TJ-SP recusa pedido de casal que pleiteou informações sobre o sexo do embrião após fertilização in vitro
Por Rachel Leticia Curcio Ximenes e Ana Claudia Scalquette
Em recente decisão, o Tribunal de Justiça de São Paulo, nos autos de processo que corre em segredo de justiça, recusou o pedido de um casal que solicitava ao laboratório médico a informação do sexo dos embriões gerados por de fertilização in vitro. Os autores do processo apresentaram a argumentação de que a rejeição do pedido inicial, feito diretamente ao laboratório, feria diretamente seus direitos à informação e à autodeterminação informativa disposta na Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD. Para eles, era uma obrigação o fornecimento de dados sensíveis, nesse caso, o material genético1.
Trazemos à tela, ensinamento da Dra. Patrícia Pinheiro ao tratar sobre a conceituação de dados sensíveis. Elucida ela que:
São dados que estejam relacionados a características da personalidade do indivíduo e suas escolhas pessoais, tais como origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente a saúde ou a vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural.
A argumentação não foi o bastante para convencer os desembargadores da 31ª Câmara de Direito Privado do Tribunal que negaram o pleito. Segundo trouxe o relator do caso, desembargador Francisco Casconi, a discussão levantada em nada tinha a ver com o quanto disposto na Lei Geral de Proteção de Dados. Para ele, a LGPD tem como ponto precípuo a preservação de direitos de liberdade e privacidade e não a garantia indiscriminada a qualquer dado. Esse é, inclusive, o entendimento do Supremo Tribunal Federal, ao julgar pedido cautelar na ADIn 6.387, tratando que a autodeterminação informativa não possui caráter absoluto. Ressaltou a ministra Rosa Weber que os direitos e garantias fundamentais encontram limites nos demais direitos consagrados pela Constituição Federal.
Os desembargadores elucidaram que muito embora o acesso à informação seja uma garantia constitucional, esse está distante de ser um direito absoluto, isso porque há outros valores e princípios constitucionais que podem ser impactados pelo uso desordenado do direito à informação. Não há o que se olvidar quanto a importância dos direitos fundamentais, entretanto, é necessário ter em mente que esses não são absolutos, tal como nos traz Raquel Denize Stum que nos ensina que “a função social dos direitos fundamentais os torna limitáveis, e que essa limitação são advindas da própria Carta Magna e de dispositivos legais de semelhante força”.3
Outro ponto ressaltado pelos magistrados é que o pedido formulado na inicial é tratado pelo Código de Ética Médica e pela resolução 2.320/22 do Conselho Federal de Medicina (CFM) que traz, de forma expressa, a proibição de se utilizar de técnicas, tal como a fertilização in vitro, como meio de escolha do sexo do embrião gerado ou de qualquer outra característica física e/ou biológica, exceto nos casos em que se deseja evitar possíveis doenças. Trata o ponto 5 da Resolução citada que:
As técnicas de reprodução assistida não podem ser aplicadas com a intenção de selecionar o sexo (presença ou ausência de cromossomo Y) ou qualquer outra característica biológica da criança, exceto para evitar doenças no possível descendente.
Nesse sentido, nos cumpre fazer uma ressalva quanto aos avanços tecnológicos já existentes. Neles são compreendidas técnicas avançadas para constatação e identificação de prováveis doenças, por meio de diagnóstico pré-natal, diagnóstico pré-implantação, terapia gênica, dentre outras. Tal como nos garante Barbas:
Graças aos progressos científicos operados na área do genoma humano, será dada primordial ênfase à prevenção e à predição da doença para evitar a necessidade do seu tratamento. Desenvolver-se-ão os testes genéticos que permitem diagnosticar com bastante antecedência as enfermidades. Aperfeiçoar-se-á o conhecimento das condições ambientais responsáveis pelo aparecimento da enfermidade.4
Continuou o desembargador relator dizendo que qualquer escolha prévia dos pais quanto ao sexo do bebê gera uma “coisificação” do ser humano, comprometendo a dignidade da pessoa humana caso fosse possível estabelecer a forma e o gênero como alguém deve nascer. É preciso ter em mente que a dignidade da pessoa humana é um princípio consagrado pela Constituição Federal, sendo tido como o princípio base de todos os outros direitos fundamentais. Para Silva, “a dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida”5.
O desembargador trouxe à luz um importante debate ao tratar que as técnicas de reprodução assistida devem ser usadas sempre para o bem-estar humano e que deve haver condenação quando alçadas para a eugenia parental (processo seletivo dos pais). Sobre o tema, Stella Maris Martinez nos elucida que:
Estabelecerão os Estados um “controle de qualidade” que defina quais as características devem ter os seres humanos para integrar-se à comunidade? Embora estas opções possam desenvolver-se em determinadas ideologias, parece-nos claro que devem merecer repúdio absoluto por parte de um Estado Social Democrático de Direito, em cuja estrutura filosófica não podem merecer acolhida. O respeito à dignidade humana impede taxativamente todo tipo de discriminação.6
Por fim, trata que a liberdade absoluta invocada é equivocada, desprezando as formas de vida não contempladas pela prévia escolha dos genitores, onde não se é viabilizada, juridicamente, a seleção do sexo da prole com fundamentação na autonomia privada e no direito à informação. Julgado improcedente o pedido, o Tribunal coaduna com o entendimento de limitação de direitos subjetivos face a princípios fundamentais – nesse caso, dignidade da pessoa humana e afasta, em duras palavras, uma verdadeira coisificação da vida humana, que não pode ser considerada um meio para satisfação de um fim.
Pois bem, os argumentos apresentados pelos interessados e o entendimento do desembargador relator demonstram, como se pode perceber, a dicotomia que existe quanto ao uso das técnicas de reprodução humana no Brasil.
Importante ressaltar que a infertilidade é problema de saúde que pode, na maior parte das vezes, ser contornado pelo uso de alguma das técnicas reprodutivas, seja da inseminação ou da fertilização. Mais recentemente, as técnicas também puderam ser utilizadas para contornar um outro problema grave que é o contágio pelo vírus HIV, preocupação de genitores quando um ou ambos são portadores e decidem engravidar. Questões genéticas graves e até a transmissibilidade do gene responsável pela ocorrência do câncer de mama e ovário já foram contornadas pelo auxílio médico na reprodução humana7.
Todavia quando se fala de escolha de sexo sem uma motivação médica que esteja ancorada na necessidade de se evitar a transmissão de alguma doença é não só “coisificar” o ser humano que se pretende ver nascer, mas, ainda, dar aos envolvidos uma espécie de controle e seleção que, até então, só foi tentado por pessoas muito nocivas à humanidade.
A eugenia, praticada com a escolha dos seres humanos “modelo”, “ideais”, aprofunda preconceitos e implica na pergunta filosófica sobre o que é “modelo”? O que é “ideal”? E mais: Quem decide os parâmetros?
O diagnóstico pré-implantacional do embrião, em todas as suas possibilidades, quando utilizado para evitar a implantação de embriões que apresentam doenças genéticas graves a ponto de causar a perda gestacional é por muitos considerada um avanço e por outros questionado eticamente sob o ponto de vista, mais uma vez, do poder da seleção.
Se, na área que envolve saúde, a escolha é ainda questionada eticamente, o que se dirá do caso concreto analisado pelo TJ/SP, de escolha de sexo. Não pairam dúvidas quanto a não possibilidade de se dar esta abertura aos envolvidos.
Devemos sempre lembrar que por séculos a sociedade evoluiu e ainda evolui em busca da igualdade e da não discriminação.
Passamos da sociedade patriarcal, herança das civilizações antigas, para a sociedade do “poder familiar”, exercido em igualdade de condições pelos genitores.
Deixamos na história o privilégio dos filhos homens e dos filhos chamados de “legítimos” para garantir a todos os filhos, como preconiza a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 227º, parágrafo 6º, a igualdade de tratamento, vedando-se quaisquer designações discriminatórias.
Admitir que técnicas que foram desenvolvidas para auxiliar pessoas que desejam engravidar e, por qualquer razão, não conseguem fazê-lo sejam utilizadas para fins eugênicos seria um retrocesso nos passos que historicamente vêm sendo dados em busca da valorização da dignidade do ser humano. Como no julgado também foi citado, seria “coisificar” o ser humano, igualá-lo a um objeto de consumo que, eventualmente, mais tarde, poderia, por defeito ou vício, até mesmo ser descartado. Caminho não permitido pela decisão dos desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Sem objetivar exaurir a polêmica sobre intenção de praticar a sexagem e, ainda, sem pretender trazer à baila as inúmeras discussões que envolvem a aplicação e uso das técnicas de reprodução humana, impossível concluir sem mencionar que o maior desafio que atualmente se enfrenta no que tange à reprodução humana assistida é a falta de regulamentação legal.
Neste artigo analisamos a decisão que veda a escolha de sexo. Em um próximo pode ser que comentemos sobre outra decisão que a permitiu. Assim está ocorrendo em diversos casos que envolvem a Reprodução Humana medicamente assistida. Permitir ou não a utilização de material genético doado após a morte de um dos genitores? Decisões favoráveis e contrárias vieram se revezando em nossos Tribunais. Possibilitar ou não o registro da criança em nome de genitores do mesmo sexo. Outra polêmica que se apresentou ao Poder Judiciário.
Assim continuará a suceder se não tivermos uma atenção do Parlamento Brasileiro a tema que reverbera nas mais diversas áreas do Direito, inclusive a Penal.
Vários projetos de lei estão há mais de uma década em tramitação sem que se vislumbre um prazo para a aprovação. Países europeus, EUA e alguns países sul-americanos já elaboraram leis específicas em que colocaram limites legais para questões como a do controle do material genético doado, sucessão post mortem, destino dos embriões excedentários e quanto ao conflito entre o direito ao conhecimento da origem genética “versus” o direito ao anonimato do(a) doador(a)8.
A vedação e até criminalização da eugenia também pode ser encontrada em muitos diplomas legais, enquanto o Brasil continua inerte, tornando-se um campo fértil para o cometimento de abusos e fazendo com que o Poder Judiciário tenha que atuar com base em princípios e resoluções, sem que se dê a segurança jurídica necessária às pessoas que utilizam as técnicas e até mesmo aos médicos.
Enfim, muito há para ser feito e a harmonia em um país que adota o sistema da Civil Law somente poderá ser alcançada quando o tema da Reprodução Humana for abordado e discutido no Parlamento.
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FONTES:
1 Casal não tem direito de saber sexo do embrião após fertilização in vitro, diz TJ/SP.
2 PINHEIRO, Patrícia Peck. Proteção de dados pessoais: comentários à Lei n. 13.709/2018. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 26.
3 STUM, Raquel Denize. Princípio da proporcionalidade no Direito Constitucional brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995. p. 119.
4 BARBAS, Stela Marcos de Almeida Neves. Direito do Genoma Humano. Coimbra: Almedina, 2007, p. 75.
5 SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana com valor supremo da democracia. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 212, p. 89-94, abr. 1998, p. 92.
6 MARTÍNEZ, Stella Maris. Manipulação genética e direito penal. São Paulo: IBCCrim, 1998, p. 258.
7 SCALQUETTE, Ana Cláudia S. Estatuto da Reprodução Assistida. São Paulo: SARAIVA, 2010, p. 67.
8 Sobre propostas para estas e outras questões vide PL 115/2015. O PL 115/2015 visa a instituir o Estatuto da Reprodução Assistida. Com 106 artigos, prevê uma proteção principiológica bastante detalhada, uma tutela civil que busca disciplinar as mais diversas situações de direito privado, além de uma disciplina administrativa para controle do uso e aplicação das técnicas reprodutivas com a criação de um Conselho Nacional de Reprodução Assistida e a tutela penal com a tipificação de mais de duas dezenas de novos crimes específicos para a reprodução humana. Projeto de Lei disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=945504 . O anteprojeto que deu origem ao Estatuto da Reprodução Humana foi idealizado pela Profa. Dra Ana Cláudia Scalquette, a pedido da Comissão de Biotecnologia e Estudos sobre a Vida da OAB/SP e após permanecer em Consulta Pública por 180 (cento e oitenta dias) no site da OAB/SP foi apresentado no Congresso Nacional pelo então Deputado Eleuses Paiva (PSD/SP). Atualmente, o projeto, reapresentado pelo deputado Juscelino Rezende Filho (PRP/MA), tramita, em regime de prioridade.
Publicado no Migalhas.