Reprodução assistida post mortem: Revisão e atualização do Código Civil
As reflexões propostas pela Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do CC brasileiro, no âmbito dos institutos de Direito de Família, são de suma importância. Isso porque, temas que, por muito tempo, foram negligenciados, apesar de sua relevância, agora constam no anteprojeto de lei entregue ao presidente do Senado Federal, que será analisado pelo Congresso Nacional (PL 04/25).
Dentre os temas considerados no anteprojeto, destacam-se: a doação de gametas, a reprodução assistida, a ampliação do conceito de família e o reconhecimento do parentesco pela socioafetividade1. O Livro IV do CC, que trata do "Direito de Família", sofreu alterações profundas em sua estrutura. A proposta, apresentada pela relatora-geral, Rosa Maria de Andrade Nery, e aprovada pela Comissão, estabelece uma nova organização para os Capítulos e Seções2, incluindo um capítulo específico sobre a "Filiação Decorrente de Reprodução Assistida"3.
Nesse capítulo (V), foi acrescida a Seção IV, que trata sobre a "Reprodução Assistida Post Mortem". Foram adicionados ao texto dois arts.: 1.629-Q e 1.629-R. O primeiro permite o uso de material genético de qualquer pessoa falecida, desde que haja autorização expressa em documento escrito, indicando sua finalidade. O segundo, por sua vez, veda a coleta e uso de material genético do falecido que não tenha consentido de forma expressa, ainda que a família manifeste posição contrária.
A discussão sobre direitos post mortem é complexa, pois envolve a vontade de uma pessoa já falecida, que muitas vezes não manifestou expressamente o desejo por ter filhos. Nesses casos, cabe ao Poder Judiciário decidir sobre as questões jurídicas envolvidas4-5. Diante do vácuo legislativo sobre o tema6, o Congresso Nacional enfrenta o desafio de regulamentar uma matéria de tamanha complexidade, definindo os limites do instituto e atendendo às necessidades e anseios da sociedade a respeito do assunto.
É necessário definir o que se entende por reprodução assistida. Segundo Marisa Decat, Maria do Carmo e Bruno Brum "reprodução assistida pode ser compreendida como todos os tipos de tratamento que incluem a manipulação in vitro (no laboratório), em alguma fase do processo, de gametas masculinos (espermatozoides), femininos (oócitos) ou embriões, com o objetivo de se estabelecer uma gravidez"7.
O art. 1.629-A do PL 04/25 (atualização do CC), estabelece que: "a reprodução humana medicamente assistida decorre do emprego de técnicas médicas cientificamente aceitas que, ao interferirem diretamente no ato reprodutivo, viabilizam a fecundação e a gravidez". Nesse contexto, o procedimento será post mortem (pós morte) se o cônjuge ou convivente autorizar expressamente o uso do material genético após o falecimento.
Anota-se que desde 2010 o CFM - Conselho Federal de Medicina já admite o emprego da técnica, em caso de morte, desde que haja autorização prévia do falecido8. Alinhado a essa perspectiva, o CNJ, reconhecendo as mudanças sociais, publicou o provimento 63/17, que exigia a autorização específica do falecido para o uso do material biológico preservado, visando a emissão de certidão de nascimento. Essa norma foi revogada pelo provimento 149/23 que incorporou a matéria ao Código Nacional de Normas do CNJ, em seu art. 513, §2º, dispondo que:
Art. 513. Será indispensável, para fins de registro e de emissão da certidão de nascimento, a apresentação dos seguintes documentos:
§ 2.º Nas hipóteses de reprodução assistida post mortem, além dos documentos elencados nos incisos do caput deste artigo, conforme o caso, deverá ser apresentado termo de autorização prévia específica do falecido ou falecida para uso do material biológico preservado, lavrado por instrumento público ou particular com firma reconhecida.
O doutor Flávio Tartuce anota os méritos da incorporação do provimento no Código Nacional de Normas do CNJ:
Em verdade, todo o tratamento da reprodução assistida e suas repercussões para os Cartórios de Registro Civil das Pessoas Naturais foram incorporados nessa norma geral, estando previstos entre os seus arts. 512 e 515. Houve uma redução de burocracias.
(...)
Anote-se novamente que o provimento 83/19 do próprio CNJ modificou o provimento 63/17, mas somente quanto à parentalidade socioafetiva e à multiparentalidade, em nada alterando o tratamento do tema da reprodução assistida, o que foi confirmado pelo Código Nacional de Normas do CNJ9.
Ademais, o art. 1.629-Q do anteprojeto de reforma do CC estabelece a necessidade de manifestação expressa em documento que autorize a utilização do material genético póstumo. Em uma primeira análise, podem surgir dúvidas sobre os tipos de documentos válidos para garantir a segurança jurídica do ato. Nesse sentido, o art. 513, §2º do Código de Normas Nacionais do CNJ prevê que o termo de autorização deve ser formalizado por instrumento público ou particular com firma reconhecida.
Embora mereçam reconhecimento as diretrizes do CNJ, que priorizam a segurança e confiabilidade do ato, a proposta legislativa, seu art. 1.598-A, parágrafo único, exige que "a autorização para o uso, após a morte, do próprio material genético, em técnica de reprodução humana assistida, dar-se-á por manifestação inequívoca de vontade, por escritura pública ou testamento público". Observa-se, assim, mais um desafio legislativo: enquanto o art. 1.629-Q pode gerar incertezas sobre a forma de manifestação de vontade, o art. 1.598-restringe os documentos válidos à escritura ou testamentos públicos, excluindo o instrumento particular com firma reconhecida, já consolidado pelo CNJ.
Cumpre ressaltar que, enquanto garantidor da segurança do ato, o reconhecimento de firma constitui "um ato realizado por notário através de sua fé pública, geradora da presunção de veracidade, atestando que a assinatura aposta em documento particular é autêntica, ou seja, foi feita em sua presença pela parte por ele identificada ou, atestando que a assinatura aposta é semelhante com a contida no cartão de assinatura do firmatário, quando este não está em sua presença". Não se mostra adequado excluir qualquer modalidade de garantia da veracidade documental, principalmente quando implica no afastamento da atuação dos notários e sua essencial fé pública, tão indispensáveis à segurança jurídica.
Como se verifica, temos no anteprojeto de lei um texto sistemático que busca sanar o vácuo legislativo existente sobre a matéria, representando avanço necessário do ordenamento jurídico frente às demandas sociais. Entretanto, surgem questionamentos acerca do instituto, em razão de aparente contradição entre as exigências para a reprodução assistida post mortem no projeto de lei - que restringe a manifestação de vontade à escritura ou testamento público - e as normas já estabelecidas pelo CNJ, que admite o instrumento particular com firma reconhecida.
O Congresso Nacional esbarra no exigente desafio de aprimorar um texto já primoroso, conciliando às exigências formais a segurança jurídica inerente ao procedimento. Em tramitação no Senado Federal como PL 4, de 2025, os parlamentares poderão apresentar mudanças substanciais ao texto atual, consoante o processo legislativo ordinário, adequando-se às necessidades contemporâneas e garantindo a autenticidade dos procedimentos realizados.
Por Rachel Ximenes, Gustavo Cazuze e Sérgio Luiz Ribeiro Filho.
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1 Juristas concluem anteprojeto de código civil; direito digital e de família têm inovações. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/04/05/juristas-concluem-anteprojeto-de-codigo-civil-direito-digital-e-familia-tem-inovacoes. Acesso em março de 2025.
2 SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; José Fernando Simão; e outros. Código Civil Comentado - Doutrina e Jurisprudência - 6ª Edição 2025. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024. E-book. pág.1414. ISBN 9788530995430. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/reader/books/9788530995430/. Acesso em março de 2025.
3 A estrutura ficou estabelecida da seguinte maneira: "CAPÍTULO V. DA FILIAÇÃO DECORRENTE DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA. Seção I. Disposições Gerais. Seção II. Doação de Gametas. Seção III. Da Cessão Temporária de Útero. Seção IV. Da Reprodução Assistida Post Mortem. Seção V. Do Consentimento Informado. Seção VI. Das Ações de Investigação de Vínculo Biológico e Negatória de Paternidade."
4 https://www.migalhas.com.br/quentes/346777/stj-proibe-implantacao-de-embrioes-apos-morte-de-um-dos-conjuges. Acesso em março de 2025.
5 STJ, 4ª T., REsp. 1.918.421, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julg. 08.06.2021, publ. DJ 26.8.2021 (o consentimento para implantação de embriões post mortem deve ser dado de forma expressa e incontestável, alcançada por meio de testamento ou instrumento equivalente).
6 "Como se pode perceber, de fato, há hoje um vácuo legislativo a respeito da reprodução assistida, com muitas dúvidas e polêmicas, sendo necessário incluir o tema no Código Civil, o que é almejado pelo processo de Reforma, ora em tramitação no Senado Federal". SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; José Fernando Simão; e outros. Código Civil Comentado - Doutrina e Jurisprudência - 6ª Edição 2025. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024. E-book. pág.1553. ISBN 9788530995430. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/reader/books/9788530995430/. Acesso em: março de 2025.
7 MOURA, Marisa Decat de; SOUZA, Maria do Carmo Borges de; SCHEFFER, Bruno Brum. Reprodução assistida: Um pouco de história. Rev. SBPH, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 23-42, dez. 2009. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-08582009000200004&lng=pt&nrm=iso. Acesso em março de 2025.
8 As resoluções do CFM que dispuseram do tema, no mesmo sentido, foram: Resolução n. 1.957 de 2010; Resolução n. 2.013 de 2013; Resolução n. 2.121 de 2015; Resolução n. 2.168 de 2017; Resolução n. 2.294 de 2021. Atualmente está em vigor a Resolução n. 2.230, de setembro de 2022. Ela estabelece que "é permitida a reprodução assistida post mortem desde que haja autorização prévia específica do(a) falecido(a) para o uso do material biológico criopreservado, de acordo com a legislação vigente."
9 SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; José Fernando Simão; e outros. Código Civil Comentado - Doutrina e Jurisprudência - 6ª Edição 2025. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024. E-book. pág.1550. ISBN 9788530995430. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/reader/books/9788530995430/. Acesso em: março de 2025.