Reforma tributária de 2023: Uma proposta de "meios consensos"
Por Manoel de Deus Correia
Não exagera quem estima que a pretensão de uma reforma estrutural no sistema tributário brasileiro já se estenda por mais de 50 anos. Relatos há que indicam que a sugestão de uma reforma constitucional disruptiva ao modelo tributário inaugurado pela emenda 18/65 se instalou logo após a promulgação do produto legislativo da chamada comissão dos gênios – composta por juristas da envergadura de Rubens Gomes de Sousa, Gilberto de Ulhoa Canto, Gerson Augusto da Silva e com grande influência do Min. Aliomar Baleeiro, o Código Tributário Nacional, já em 1965.
De lá para cá, como consabido, foram inúmeras as tentativas, todas elas, sem exceção, alvejadas por um vasto rol de oposições e ressalvas, ora de setores econômicos nacionais e transnacionais – receosos por um aumento de carga tributária, alegadamente inevitável -, ora por parte dos entes federativos, no mais das vezes os Estados e Municípios, em posição defensiva de suas autonomias federativas impositivas e ao montante de suas arrecadações.
Com efeito, a história se encarregou de conferir ao tema da reforma tributária um claro estigma de dificuldade – justo e demonstrável – tendo sido, ao mesmo tempo, uma promessa e um fracasso da maioria dos governos que sucederam a Constituição de 1988. Salvo alterações infraconstitucionais que notadamente foram importantes para simplificação e dinamização da tributação no país, uma reforma deveras estrutural do sistema tributário nacional nunca chegou a termo. A questão, em suma, é espinhosa por natureza e, por assim ser, é recomendável que sobre ela não se estendam diagnósticos simples nem projeções sobremodo otimistas em relação a sua efetivação.
Feitas essas ressalvas, necessárias à toda prova, não se pode negar o fato de que o status da reforma tributária que atualmente tramita no Congresso Nacional é, pelo menos, animador a seus entusiastas. Explico: a pretendida “unificação” das duas principais Propostas de Emenda à Constituição que versam sobre reforma tributária do consumo – PECs 45 e 110 – parece ter chegado a um primeiro termo na última semana (6/6/23), com a apresentação do relatório do Relator do Grupo de Trabalho da reforma tributária na Câmara1, Deputado Aguinaldo Ribeiro e, o mais interessante de tudo: com público apoio do Governo Federal e das Presidências da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.
Este por si só já seria um marco atípico, no curso histórico da epopeia da reforma tributária, a se levar em conta que, segundo proclamado, o substitutivo cujas diretrizes estão veiculadas no dito relatório deverá ser levado ao Plenário da Câmara dos Deputados ainda na primeira semana de julho. Ocorre que a experiência atual se revela ainda mais curiosa, na medida em que o relatório em questão tenha cuidado de veicular não uma proposta aclamada – o que parece ser, convenhamos, impossível – mas sim uma proposta que chamamos de “proposta de meios consensos”.
Recorremos a essa expressão, um tanto parcimoniosa, para tentar exprimir aquilo em que, a nosso juízo, resumiu-se essa reforma tributária que, enfim, parece ter fortes chances de ser aprovada após tantos anos. Antes de analisar seu conteúdo, entretanto, convém-nos traçar, a breve trecho, algumas particularidades que entendemos ter elevado tal reforma ao seu atual patamar de tramitação e, principalmente, de apoio.
É de se ver que, embora não seja uma exclusividade das propostas que resultaram na elaboração do recém apresentado relatório, a pretensão de se aprovar uma reforma exclusiva da tributação sobre a base do consumo (bens e serviços), com poucos toques na tributação sobre renda e patrimônio, revelou-se uma estratégia acertada. A levar em conta a forte marca patrimonialista – em qualquer acepção – das classes mais abastadas do país, uma alteração profunda da tributação sobre a renda e o patrimônio contaria, seguramente, com uma resistência ainda maior de certos grupos de interesse. A opção por deixar a reforma tributária dessas bases imponíveis para um segundo momento, como vem apregoando o Governo Federal, facilitou o abrandamento das discussões, bem como a evidenciação do que chamamos de “meios consensos”.
Além disso, a opção pela adoção de um tributo de modelo IVA, à moda europeia, parece ter cativado parcela dos grupos econômicos – sobretudo a indústria – não pela proposta de uma alíquota única, mas pela promessa de uma tributação amplamente não cumulativa, que pudesse garantir o aproveitamento irrestrito de créditos financeiros. Ademais, o IVA, convenhamos, é um imposto velho, criado no final da década de 40, na França, e utilizado atualmente por mais de 170 países do globo. Com efeito, em sendo velho, mesmo que não na experiência brasileira, acreditamos que este imposto desfrute da fama e da escama decorrente velha máxima que costumam atribuir ao Professor Geraldo Ataliba: os melhores impostos, assim como os sapatos, são os velhos.
De mais a mais, dois outros fatores, estes de natureza essencialmente política, também parecem ter influenciado no relativo êxito da atual proposta de reforma. O primeiro deles é o fato de a ideia central da proposta – criação de um IVA, de cobrança por fora, com uma única ou com o mínimo de alíquotas possível – não ter advindo de núcleos institucionais ou tradicionalmente políticos. A proposta originalmente apresentada pelo Centro de Cidadania Fiscal (C.CiF) vem sendo manejada há algum tempo e, principalmente, por governos e grupos políticas distintos, independentemente de seus matizes ideológicos. Ao que tudo indica, essa particularidade impediu que a ideia ficasse vinculada a um único campo e permitiu uma reunião mais eclética dos setores econômicos, sociais e políticos.
O segundo ponto, decorre do primeiro, mas com ele não se confunde: trata-se da constatação de que, em virtude de ter-se assistido um vasto número de perfis orbitando o entorno da proposta mencionada, esta acabou sendo conservada pelo atual Governo, não tendo este apresentado a ela qualquer alternativa, de modo a aproveitar os esforços até então desprendidos em seu favor. Essa estratégia madura, de natureza eminentemente política, implicou na assunção de notório protagonismo do Congresso Nacional que, na linha da quadra histórica recentíssima por que passamos no Brasil – com escancarado fortalecimento do poder do Parlamento – evoluiu na tramitação da proposta, bem como na fortificação da base de apoio de congressistas ao projeto.
Toda essa dinâmica de fatores resultou na síntese que hoje pode-se intuir dos termos do relatório do Dep. Aguinaldo Ribeiro. Referido documento, embasado nas discussões do já mencionado Grupo de Trabalho da Reforma Tributária, que ocorreu na Câmara dos Deputados de 18 de março a 06 de junho do presente ano, contando com a participação de gabaritados tributaristas, dentre os quais, alguns mencionaremos oportunamente, é base de nosso entendimento de que estão hoje na reforma tributária do ano de 2023 aqueles que foram e sempre serão pontos de tensão principalmente para os grupos econômicos, mas que terminaram sendo alvo de concessões em prol da aprovação da reforma. São estes pontos referidos que chamamos de “meios consensos”: tratamentos jurídicos que possuem resistência por um ou outro setor de contribuintes, mas que, suavizados, passaram a compor a proposta de alteração constitucional do sistema tributário nacional.
Nossa afirmação, como já se deve ter claro, nem de longe sugere que não haja pontos inflexíveis por alguns setores ou entes federativos no alvo da reforma: é o caso do setor de serviços que amargará, a olhos vistos, um aumento substancial de carga tributária, e dos grandes municípios que temem a diminuição de sua arrecadação com a substituição do ISS. Entretanto, se analisarmos bem, essas e também outras questões altamente conflitantes, em última análise, tratam-se de matérias próprias de lei complementar e que, por isso, não serão encerradas na reforma constitucional.
Questões como a fixação da malfada alíquota única, bem como a composição da alíquota geral – levando em consideração a competência estadual e municipal de estabelecerem suas alíquotas que integrarão a alíquota total, a dinâmica dos regimes fiscais específicos, ou mesmo a designação dos sujeitos passivos do Imposto Seletivo, todas elas serão, corretamente, designadas para tratamento em lei complementar. Em suma, a atual etapa da reforma tributária não proporá dissensos escancarados, que carecem de mais tempo e aprofundamento de discussões, mas tentará, em nível constitucional, positivar proposições que decorreram de “meios consensos”.
A prova destas afirmações está justamente nas diretivas apresentadas no relatório do Grupo de Trabalho, dentre as quais, destacamos as seguintes:
Modelo de IVA: A opção pela instituição de um IVA dual é um claro aceno da proposta aos estados e municípios, que intenta senão prestigiar, ao menos propor uma saída para as severas críticas que a PEC 45 recebeu em relação ao comprometimento da autonomia dos entes federativos. Levando em conta que estes entes sempre foram agentes refratários a uma alteração estrutural do sistema tributário, ressalvados os dissensos entre municípios grandes, médios e pequenos, a eleição da tese defendida pela agora antiga PEC 110 afigura-se como um claro meio termo.
Não-cumulatividade: Ainda sobre a instituição do modelo de IVA, o relatório apresenta clara preocupação quanto à definição de não-cumulatividade plena prevista nas PECs 45 e 110. O documento encaminha o entendimento para que a redação do dispositivo constitucional veiculador dessa dinâmica seja aperfeiçoada, de modo a garantir que todos os insumos empregados nas variadas atividades econômicas possam dar direito a crédito. Parece que o Relator, ao fim, levou em conta as recomendações dos tributaristas mineiros – Profa. Misabel Derzi e Prof. André Mendes Moreira – que alertaram o colegiado do GT para o fato de que, tal como redigidos nas duas propostas, os dispositivos de antanho não garantiam a não cumulatividade plena e, para tanto, aquele último Professor sugeriu2 redação específica, de modo a prever a obrigação de não segregação de créditos, sua dedutibilidade integral e a vedação de limitações temporais ou espaciais ao aproveitamento destes.
Alíquotas, regimes diferenciados e especiais: No que diz respeito às alíquotas, o relatório encaminhou posição no sentido de que o substitutivo preveja alíquotas únicas (IVA dual), mas permitindo alíquotas outras para bens e serviços específicos. Nessa mesma linha, o relatório apontou a possibilidade de se conceder regimes fiscais específicos a serviços e produtos que possuam peculiaridades que dificultem ou não recomendam a apuração por meio de débitos e créditos, tais como: operações com bens imóveis – incluindo toda a cadeia da construção civil, serviços financeiros, seguros, cooperativas, combustíveis e lubrificantes. Como se nota, estas previsões são claras concessões ao setor de serviços que poderão gozar de alíquota diferenciadas, bem como sistemas de apuração próprio – como da monofasia, hoje já aplicado no setor de combustíveis e lubrificantes. Além disso, constam no documento menções claras sobre a concessão de regimes diferenciados aos produtos da cesta básica, previsão que beneficia também o setor agropecuário. Por fim, a manutenção do Simples Nacional e da Zona Franca de Manaus beneficiam, respectivamente, os pequenos e médios prestadores de serviços e a indústria da região norte do país.
Imposto seletivo: A discussão dos sujeitos passivos do chamado imposto do pecado foi expressamente deixada para a lei complementar. A incidência desse imposto deverá ter como princípio informador, aos moldes do IPI, o princípio da seletividade, de modo a desestimular as externalidades negativas, isto é, o consumo de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente. Sendo uma questão naturalmente espinhosa, principalmente o setor da indústria terá, mais uma vez, tempo para se dedicar ao debate sobre os conceitos de “externalidade” e “prejudicialidade”, bem como apresentar meios de adequação das cadeias produtivas, de modo que estas possam se afastar gradativamente do campo de incidência deste imposto.
Benefício de ICMS já concedidos: O relatório é claro em prever a manutenção dos benefícios fiscais do ICMS convalidados até 2023 pela lei complementar 160/17, sugerindo que a definição da “formatação necessária para o cumprimento dessa diretriz” seja discutida com os Governos federal e estaduais. Caminhou, enfim, no sentido de preservar o ato jurídico perfeito, prestigiando a segurança jurídica dos contribuintes.
Nestes termos, levando em consideração os condões recentemente atribuídos ao relatório final do Grupo de Trabalho, qualquer alteração que possa se dar na possível aprovação da proposta de substitutivo na Câmara dos Deputados em contrário às previsões acima expostas será uma surpresa. Outra sorte a que estamos entregues – sendo está uma álea comum a todos os contextos de produção legislativa – é o da redação dos dispositivos normativos que comporão o substitutivo à PEC 45. Isto é, como por muitas vezes advertido pelo Professor Paulo de Barros Carvalho3, não raro o legislador peca em sua linguagem, em um de seus três planos fundamentais: seja na sintaxe, na semântica ou na pragmática, quando não nos três ao mesmo tempo.
De todo modo, a certeza que temos é de que, dentro dos próximos meses, a contar pelo ânimo do Congresso, assistiremos ao desfecho, virtuoso ou não, de mais uma proposta de reforma tributária sobre o consumo está, em especial, marcada pela tentativa de se positivar, em nível constitucional, prescrições que decorreram de “meios consensos”, nos termos como pretendemos demonstrar. Dispensada de enfrentar pontos mais sensíveis e delicados – haja vista, de fato, tais matérias não condizerem com o patamar constitucional, mas sim com o tratamento próprio por norma geral de Direito Tributário, nos termos do art. 146, III da Constituição da República – a atual proposta de reforma constitucional do sistema tributário brasileiro lega para as seguintes e inadiáveis discussões sobre sua LC, senão uma sina de confrontos, ao menos uma promessa de muitos derradeiros ruídos.
Publicado no Migalhas.
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1 https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2285113
2 A feliz sugestão do Professor André Mendes Moreira foi no sentido de substituir a redação apresentada nas duas PECs que, em suma, eram idênticas à previsão atual de não-cumulatividade do ICMS que não garante o aproveitamento amplo de créditos, segundo o próprio entendimento do Supremo Tribunal Federal, pela utilização da diretiva do IVA europeia por meio da identificação do princípio da neutralidade vertical e da previsão de que “o IBS só exigível após prévia dedução do montante do imposto que tenha incidido sobre todas as aquisições que impactem o preço desse bem ou serviço, estejam tais aquisições direta ou indiretamente relacionadas com a atividade empresarial”. (Conferência proferida, em 15 de março de 2023, em Audiência Pública do GT da Reforma Tributária na Câmara dos Deputados).
3 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário Linguagem e Método. 8ª ed. P.