O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) reconheceu a existência de uma união estável paralela ao casamento, além de admitir a partilha de bens entre esposa e companheira. Decisões como essa são raras e o que fez a diferença no processo foi o fato de a esposa saber que o marido mantinha um relacionamento fora do matrimônio. O processo foi movido por uma mulher que se relacionou por mais de 14 anos com o parceiro, enquanto ele era legalmente casado. A decisão é da 8ª Câmara Civil, que determinou que a partilha dos bens seja buscada em outra ação judicial.
O Código Civil não admite o reconhecimento de união civil com pessoa casada, segundo o parágrafo 1º do artigo 1.723. A exceção só ocorre se a pessoa estiver separada de fato — sem recorrer aos meios legais para formalizar a separação. A mulher afirma na ação (em segredo de justiça) que ficou com o parceiro até a morte dele em 2011. No processo, alega que chegou a morar junto com ele em algumas cidades do Rio Grande do Sul e no Paraná.
A advogada Aline Braghini, do CM Advogados, afirma que a decisão é bastante atípica, não possui respaldo legal e tem grande chance de ser reformada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), que tem precedentes contrários (processo nº 1002588-86.2016.8.26.0006). Ela ainda cita decisão da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, que negou a uma mulher que conviveu 37 anos com um homem casado o direito de dividir pensão com a viúva. (RE 397762).
Para Aline, "não cabe ao tribunal ampliar os direitos do convivente, em detrimento do cônjuge, já que a lei veda que uma pessoa celebre dois casamentos concomitantes". Ela acrescenta que, ainda que as relações humanas estejam em constante evolução, "a legislação em vigor não permite essa situação".
Ao analisar o caso, o relator José Antônio Daltoé Cezar, entendeu que, uma vez comprovada a relação extraconjugal "duradoura, pública e com a intenção de constituir família", ainda que concomitante ao casamento, é possível, sim, admitir a união estável. "Desde que o cônjuge não faltoso com os deveres do casamento tenha efetiva ciência da existência dessa outra relação fora dele, o que aqui está devidamente demonstrado", acrescenta na decisão.
Para o magistrado, "se a esposa concorda em compartilhar o marido em vida, também deve aceitar a divisão de seu patrimônio após a morte, se fazendo necessária a preservação do interesse de ambas as células familiares constituídas".
O desembargador ainda afirma na decisão que o conceito de família está em transformação. "Deixando de lado julgamentos morais, certo é que casos como o presente são mais comuns do que pensamos e merecem ser objeto de proteção jurídica, até mesmo porque o preconceito não impede sua ocorrência, muito menos a imposição do ‘castigo’ da marginalização vai fazê-lo", diz.
A decisão foi por maioria de votos. Apenas o desembargador Luiz Felipe Brasil Santos votou de forma contrária. Para ele, o direito de família brasileiro está baseado no princípio da monogamia. "Se não são admitidos como válidos dois casamentos simultâneos, não há coerência na admissão de uma união de fato (união estável) simultânea ao casamento — sob pena de se atribuir mais direitos a essa união de fato do que ao próprio casamento", afirma.
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