Por Rachel Leticia Curcio Ximenes e Wilson Levy
A pandemia da covid-19 inscreveu na vida das cidades um componente de urgência que se desconhecia antes de sua eclosão. Rapidamente, gestores públicos precisaram investir vultosas quantias de recursos públicos na instalação de leitos e demais unidades de Saúde. Diante da iminência da peste e da morte, resolver os problemas decorrentes da desigualdade socioespacial se tornou imperiosa – e para ontem.
Não que a urgência seja um dado novo. Para quem estuda a cidade e suas contradições, inúmeros cenários já demonstravam a necessidade de uma intervenção eficaz e eficiente do Poder Público. O flagelo do saneamento básico, por exemplo – um desafio típico do século XIX – já é velho conhecido de planejadores e urbanistas. Moradia adequada, tema do século XX, também habitava as preocupações de especialistas de diversos campos, sem que o tema despertasse maior preocupação de tomadores de decisão.
Essa situação ensejou um olhar novo sobre o planejamento urbano. Para ser rápido, eficaz, econômico e apto a satisfazer a demanda por qualidade de vida nas cidades, ele precisa estar baseado em evidências. Vale dizer, escolhas ideológicas e decisões políticas só farão sentido, daqui em diante, se puderem ser legitimadas por elementos racionais, colhidos da realidade concreta, tais como dados e indicadores.
A prosperidade dos perímetros das polis [1], afinal, deve ter por compromisso o seu preparo à devida organização de soluções para melhorar a qualidade de vida das pessoas que se estabelecem nas cidades, a terem as evidências um importante papel à salubridade das cidades.
O Planejamento Urbano, como ciência, nada mais é que uma ferramenta de soluções a fim de se projetar o crescimento e o eficaz funcionamento de áreas urbanas e todos os aspectos que as circunscrevem, com o grande propósito de oferecer melhorias não só nas atividades previstas ao bom funcionamento de cidades, mas e, principalmente, o planejamento urbano tem por objetivo o incremento da qualidade de vida de sua população.
A fim de que se demonstre igualitária e democrática, a reforma urbana deve se alinhar aos ditames de inserção de toda sociedade pertencente às cidades, com toda sua diversidade e natureza; logo, as evidências apresentam um bom modelo de idealização das metrópoles para que se haja o pleno acesso à cidadania, a propor um eficaz direito à moradia nos municípios, conforme fora estabelecido na Constituição Federal, no artigo 30, incisos VIII e IX [2], como se transcreve:

"Art. 30. Compete aos Municípios:
VIII – promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;
IX – promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual".

Como dito, para a construção de políticas de desenvolvimento urbano é necessário um planejamento baseado em evidências. Isso significa dizer que toda tomada de decisão deve se dar com base em da- dos e elementos concretos, e não em intuições. Todas as ações a serem tomadas irão, necessariamente, ser embasadas em estudo e aplicação de acordo com uma base de dados sólida com informações, indicadores e cálculos sobre o ambiente objeto de intervenção.
A tratativa de soluções ao crescimento e estabelecimento de cidades não só no Brasil como no mundo nada mais é que a utilização de cenários passados e também de estudos a seguirem uma lógica confiável e exequível [3], a permearem a devida segurança jurídica na sua aplicabilidade e eficácia em sua implementação.
No Brasil, existem plataformas [4] que reúnem estudos e informações sobre 27 (vinte e sete) capitais brasileiras e 9 (nove) regiões metropolitanas, a ter por base dados georreferenciais não só dos municípios e regiões metropolitanas em si, mas todo o seu âmbito de aplicação, como a determinação de programas sociais, ações afirmativas, infraestrutura de transportes e devida mobilidade urbana ao progresso das cidades. Estes estudos são cruciais ao fomento e sustentação de evidências, posto que as devidas informações são basilares ao de- vido entendimento das estruturas já aplicadas e necessidades a serem estudadas em cada localidade.
Para o desenvolvimento dessa base é necessário também, e primeiramente, uma estrutura institucional que facilite e permita a criação de times específicos e capacitados, com afazeres bem definidos, a fim da boa comunicação e troca com o setor público, a estarem seguros e empenhados no trabalho a ser desenvolvido. Essa estrutura precisa garantir que haja um alicerce de leis, normas e compartilhamento de dados. No caso do Brasil, esse arcabouço deve, por princípio, seguir a correlação à normatividade vigente, a seguir não só legislações federais, mas também dos demais entes federativos.
Seguindo esse entendimento, é preciso que equipes de diversas secretarias públicas trabalhem alinhadas e em conformidade, posto que será necessário, no decorrer do projeto, uma atividade conjunta de alinhamento de dados a tratar do interesse e supremacia do interesse público.
Viver com qualidade não é somente ter por respeitado e requerido uma boa habitação; a natureza do ser humano solicita atuações que também estejam fora do âmbito no conceito residencial, posto que a dignidade da pessoa humana não está adstrita ao mínimo existencial [5]. A plenitude da felicidade da população nas polis depende de ações alinhadas ao bom desenvolvimento comunitário, a partir de sua representatividade, lazer e gestão; ainda, para garantir que estes incentivos sejam formados e mantidos, também é necessária uma boa estrutura de recursos humanos e financeiros que possam alcançar e fornecer tudo o que for necessário durante a implementação, garantindo a continuidade das ações.
Com os programas sociais formados, o passo seguinte é organizar todas as bases de dados para que o direcionamento das ações seja claro, a permitir um melhor planejamento ao tempo, razoabilidade e proporcionalidade de ações. Os dados podem e devem sofrer intervenções à medida em que novos estudos e coletas são feitos na produção de informações feitas pelos times especialistas em cada campo. As equipes de ação e estratégia precisam estar em harmonia para que, durante a implementação das ações, possa haver soluções alternativas de acordo com as novas necessidades apresentadas.
Nesse sentido de fomento de ações sociais e planejamento de diminuição das desigualdades existentes, são necessários mecanismos capazes de auxiliar no processo de implementação de soluções aos dados coletados. Temos como exemplo o trabalho desenvolvido pela Organização das Nações Unidas – ONU, por meio do "UN-HABITAT", que publicou, em 2018, documento (Planning Law Assessment Framework) contendo ferramentas para possibilitar, aos administradores públicos e legisladores, a avaliação da legislação urbanística municipal, analisando se esta atinge suas finalidades pretendidas [6].
Corroborando com o quanto dito acima (da necessidade de coleta de dados e organização do direcionamento das ações), o documento trouxe consigo a sugestão de aprofundamento da qualidade da legislação a partir de cinco aspectos principais: "a consistência dos objetivos, a transparência e eficiência dos mecanismos e processos, a organização institucional das responsabilidades, a clareza do processo de elaboração e a capacidade de implementação".
Levantadas as reais necessidades e observados seus desdobramentos, sua aplicação real deve ser objetiva, com base sólida, de modo a refletir as demandas e de- safios locais a serem combatidos. Em setembro passa- do, a ONU publicou o seu relatório anual de 2020, trazendo recomendações para o combate à desigualdade espacial [7]. O relatório traz, minuciosamente, os feitos da Organização das Nações Unidas nas áreas de maior necessidade de desenvolvimento urbano.
A partir do relatório, é possível inquerir que sem o pleno exercício dos direitos humanos básicos não é possível alcançar um desenvolvimento sustentável, melhorando-se, com isso, o planejamento e formulação de políticas que aumentem a isonomia de acesso aos serviços básicos, bem como espaços públicos e uma habitação adequada. O documento traz, ainda, que a ONU vem auxiliando as cidades, de modo a reavaliar seus benefícios potenciais, de modo a melhorar seu progresso urbano, por meio de coleta de dados que ajude na estruturação de um planejamento regional que seja eficaz, resultando em produtividade espacial e em um progresso igualitário.
A aplicabilidade de evidências no desenvolvimento sustentável de cidades, ou seja, cenários que já denotam qualidade na sua aplicação, é deveras relevante, posto que sua ocorrência em atos passados não gera dúvidas de seus atributos em conjunturas futuras. A serventia e eficácia das demonstradas atividades tanto em cenário privado, mas, e principalmente, em esfera pública, conduzem ao bom funcionamento das cidades, visto que a sua implementação denota segurança jurídica não só pela sua prévia aplicabilidade, mas também por todo estudo que o circunscreve, a levar em conta toda uma gestão de qualidade permeada por estudos prévios e monitoramento e revisão constante.
Falar de desenvolvimento de cidades a partir do uso destes dados é, assim sendo, um viés que eclode nos objetivos permeados no planejamento urbano, posto que boa parte da complexidade da tomada de decisões se sustentaria nos evidentes cenários permitidos em determinado perímetro urbano, a compreender não só o que seria melhor ao acesso democrático de moradia à toda a população, mas também à qualidade de vida dos cidadãos e visitantes no local. O planejamento urbano não se limita, e nem deve se limitar, na habitação populacional8 – o crescimento dos municípios deve acompanhar o bem-estar.


NOTAS
[1] World Migration Report 2015. IOM, 2015. Disponível em: <https://www.iom.int/sites/g/files/tmzbdl486/files/country/docs/syria/IOM-World-Migra- tion-Report-2015-Overview.pdf>. Acesso em: 14 out. 2021.
[2] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Centro Gráfico, 1988.
[3] SPERANDIO, A. M. G.; BLOES, R. B.; LIN, P. S. L. Evidências de métodos participativos para o planejamento urbano da cidade saudável. Labor e Engenho, Campinas, SP, v. 13, p. e019024, 2019. DOI: 10.20396/labore.v13i0.8657594. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index. php/labore/article/view/8657594. Acesso em: 14 out. 2021.
[4] Base de Dados. Mobilidados, 2021. Disponível em: <https://mobilidados.org.br/database?category_slug=dados-brutos-e-indicadores>. Acesso em: 14 out. 2021.
[5] ABREU, M. G. Habitação de interesse social no Brasil: caracterização da produção acadêmica dos Programas de Pós-Graduação de 2006 a 2010. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Arquitetura, Engenharia e Tecnologia, UFMT, Cuiabá, 2012.
[6] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/claudiobernardes/2019/02/documento-da-onu-pode-auxiliar-na-avaliacao-da-legislacao-urbanistica.sht- ml <acesso em 22 de outubro de 2021>
[7] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/claudiobernardes/2021/09/onu-recomenda-acoes-para-combater-a-desigualdade-espacial.shtml?origin=- folha <acesso em 22 de outubro de 2021>
[8] VILLAÇA, F. O que todo cidadão precisa saber sobre habitação. São Paulo: Global Editora, 1986.