O direito ao esquecimento é incompatível com a Constituição Federal
Por Rachel Ximenes
Eis o veredicto: o direito constitucional é incompatível com a Constituição Federal. Após quatro sessões plenárias – o julgamento começou a ser analisado na primeira sessão do ano (3/2) – o Supremo Tribunal Federal (STF) definiu, nesta quinta-feira (11/2), que o direito ao esquecimento é incompatível com a Constituição – pelo qual alguém poderia reivindicar que meios de comunicação fossem impedidos de divulgar informações de um fato verídico considerado prejudicial ou doloroso.
Dos 11 ministros, nove se manifestaram contra o direito ao esquecimento e um a favor. O ministro Luís Roberto Barroso declarou suspeição e não participou do julgamento. A decisão do STF tem repercussão geral e servirá de orientação para casos semelhantes nas demais instâncias da Justiça. Ao decidir pelo não reconhecimento do direito ao esquecimento, o STF coloca o Brasil na vanguarda da história.
Lembrando que no Brasil, o conceito de direito ao esquecimento não é previsto na legislação, mas tem assento constitucional e legal, embasado pelos direitos a privacidade, intimidade e honra respaldados pelo artigo 5°, X da Constituição e pelo Artigo 21 do Código Civil. O tema tem sido muito discutido nas instâncias inferiores em inúmeros pedidos de remoção de conteúdo feitos à Justiça. A vertente que ora se debate é o direito que uma pessoa possui de não permitir que um fato, ainda que verídico, ocorrido em determinado momento de sua vida, seja exposto ao público em geral, causando-lhe sofrimento ou transtornos. Temos de um lado, o direito à memória, a liberdade de expressão e informação e, de outro, direitos à honra, intimidade, privacidade e ressocialização.
No caso em questão, o Recurso Extraordinário 1.010.606, possui repercussão geral e versa sobre reparação civil pleiteada pela família da vítima de brutal assassinato ocorrido no final dos anos 50 no Rio de Janeiro. A família de Aida Curi procura reparação frente a reconstituição do caso, sem qualquer autorização, vinculada em um programa de televisão da rede globo, em 2004. Na ocasião, os familiares justificaram que ação tem como ensejo o fato de terem sido relembrados dos fatos, que foi encenado e transmitido em cadeia nacional, enquanto gostariam de esquecer as brutalidades pelas quais Aida foi submetida. Eles buscam reparação da TV Globo pela reconstituição do caso no programa televisivo “Linha Direta” sem a autorização da família. O programa foi exibido em 2004.
O voto do relator, Ministro Dias Toffoli, foi proferido na sessão ocorrida em 4/2. Considerando que o caso em discussão (RE 1.010.606) se refere a um programa de televisão (Programa Linha Direta – Emissora de televisão Globo), mas a discussão se tornou amplamente debatida por conta dos avanços da internet, o Ministro pautou a linha do voto em “existência ou inexistência do direito ao esquecimento”, independentemente da plataforma utilizada.
O ministrou caracterizou como direito ao esquecimento a “pretensão apta a impedir a divulgação, seja em plataformas tradicionais ou virtual, de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos, mas que, em razão da passagem do tempo, teriam se tornado descontextualizados ou destituídos de interesse público relevante”. O relator ressaltou que não há previsão legal do direito ao esquecimento e não se pode restringir a liberdade de expressão e imprensa. Entendeu que o direito ao esquecimento é “incompatível com a Constituição”, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais. Para o ministro, impedir o acesso a informações verdadeiras e obtidas de forma legal fere a liberdade de expressão. Toffoli também rejeitou a indenização.
O ministro Nunes Marques divergiu em parte do relator. Para o ministro, não há direito ao esquecimento no país, mas a família de Aída Curi deve ser indenizada por danos morais, a ser fixada na instância de origem. A liberdade de expressão é ampla e não pode ser limitada previamente. O ministro lembrou que a vítima do crime não era pessoa pública e que a família pediu, ao ser procurada pela emissora para dar entrevistas, que o caso não fosse veiculado, o que poderia, para ele, ter sido considerado.
O ministro Alexandre de Moraes também entendeu que não há direito ao esquecimento no Brasil e que eventuais abusos na divulgação devem ser avaliados caso a caso. Não existe permissão para limitar preventivamente conteúdo do debate público em razão do efeito que certos conteúdos possam vir a ter junto ao público. Isso é censura prévia. Entendeu que não cabe indenização porque houve uma narrativa objetiva do caso de Aída Curi. Alega que por mais sensíveis que sejam os fatos, jamais poderão ser apagados da crônica policial. O fato é cruel em si. Foi um crime de comoção nacional.
Com alguns questionamentos o Ministro vai além quando defende que o Judiciário não pode fixar um prazo para um direito ao esquecimento. É possível apontar uma definição sobre o real significado e as consequências de um abstrato “direito ao esquecimento”? Pode-se esquecer algo simplesmente apagando o acesso a uma memória coletiva de fatos reais ocorridos no passado?
Apenas o ministro Edson Fachin divergiu do relator ao reconhecer o direito ao esquecimento. É possível afirmar que o direito ao esquecimento compreende, mas não se reduz nem aos tradicionais direitos à privacidade e à honra, nem tampouco ao direito à proteção de dados. Ele decorre, em verdade, de uma leitura sistemática do conjunto destas liberdades fundamentais. Apesar de ser favorável ao direito ao esquecimento, no caso concreto de Aída Curi, entendeu que não havia dano a ser reparado. Para o ministro, a informação veiculada faz parte de amplo acervo público de jornais, revistas e trabalhos acadêmicos, tratando-se de material essencialmente público.
A ministra Rosa Weber acompanhou o relator, considerando o direito ao esquecimento incompatível com a constituição. Fez uma reflexão aprofundada acerca da defesa do direito à privacidade com a seguinte indagação: “Se aos cidadãos não for assegurada uma esfera privada livre de interferência externa, de que servirá a liberdade de expressão? “. A ampla proteção conferida pela Constituição à liberdade de pensamento ou expressão independe da forma ou do veículo empregado. Essa liberdade é plena, e não pode ser limitada sequer pelo legislador. Se, de um lado, a retórica ao direito ao esquecimento tem sido frequentemente apropriada com justificativa oportunista para censura, seja na internet seja em ambientes tradicionais, de outro, o conceito apreende sentidos e usos legítimos, amparados pela legislação da proteção à privacidade e pelo escopo da LGPD.
A ministra Cármen Lúcia acompanhou o relator e votou contra o direito ao esquecimento e contra o pagamento de indenização à família. Segundo a ministra “Esquecer não é desfazer, não é apagar. É não lembrar”, o esquecimento suprime fatos e ajuda a acobertar fatos. É de histórias comuns que a história de um povo se constrói”. Afirmou que o esquecimento pode ser uma forma de superação individual de dores maiores, mas pode ser politicamente um instrumento de mentiras, falsificação da verdade. Uma pessoa não pode proibir o outro de saber e de se lembrar de fatos que aconteceram na sociedade. Discutir o direito ao esquecimento como direito fundamental, de alguém poder impor silêncio ou segredo de fato ou ato que pode ser de interesse público, seria um desaforo jurídico para uma geração que lutou pelo direito de lembrar.
O ministro Ricardo Lewandowski também acompanhou o relator e afirmou que o direito ao esquecimento nunca encontrou abrigo no direito brasileiro. Ressaltou inclusive que um dos próprios irmãos da vítima já teria publicado dois livros acerca do crime. O direito ao esquecimento só pode ser apurado caso a caso, em uma ponderação de valores, se prevalece a liberdade de expressão ou a preservação da intimidade. O direito ao esquecimento jamais constituiu um direito jurídico autônomo e independente.
O Ministro Gilmar Mendes acompanhou o entendimento do ministro Nunes Marques, contra o direito ao esquecimento, mas a favor de indenização à família de Aída Curi. Para o ministro, ao dizer que a ingenuidade da vítima contribuiu para o crime, o programa de TV extrapolou o direito de informar, expondo a vida de forma vexatória. Defendeu que devia ser permitida a divulgação jornalística ou acadêmica de fatos e, inclusive de dados pessoais, desde que haja interesse público ou histórico, inclusive ressaltando que se houver abuso do uso dos dados pessoais, cabe direito de resposta e indenização dos autores.
O ministro Marco Aurélio Mello votou com o relator. Segundo o decano do STF, a Constituição diz que “a manifestação do pensamento, a criação e a informação, sob qualquer forma, não sofrerão qualquer restrição” (Artigo 22º, CF). Observou o direito de informar as novas gerações, por isso, não cabe simplesmente passar a borracha e partir-se para um verdadeiro obscurantismo, um verdadeiro retrocesso em termos democráticos. Veículo de comunicação tem o dever de retratar o fato que ocorreu.
O presidente do STF, ministro Luiz Fux defendeu ser possível a aplicação do direito ao esquecimento a casos específicos, mas não quando as informações são de interesse público, pois o direito ao esquecimento não pode obstaculizar o direito à informação. Segundo Fux, “é inegável que o direito ao esquecimento é uma decorrência lógica da tutela da dignidade da pessoa humana”, mas, no caso julgado, a liberdade de expressão supera o direito ao esquecimento.
A Lei Geral de Proteção de Dados – Lei 13.709 de 14 de agosto de 2018 – trouxe consigo novas formas de lidar com os dados e sua proteção, impactando diretamente no que diz respeito ao direito ao esquecimento. Nesse contexto, a norma surge norteando-se sob a ótica do respeito à privacidade, reconhecendo o direito à autodeterminação informativa, a liberdade de expressão, de comunicação, de informação, inviolabilidade da intimidade, da honra, da imagem, elencados em seu artigo 2º. Com o exponencial aumento crescimento de trocas de informações pela internet, a disposição é que agora busque-se uma compatibilização entre as normas, face aos direitos fundamentais no que tange o direito ao esquecimento. A LGPD possui condão para servir como fundamento as decisões judiciais que sentenciem a retirada de conteúdos da internet. Mostra-se qualificada para cooperar com a efetiva proteção daqueles que tiverem o direito ao esquecimento admitido. O direito ao esquecimento cuida de controlar a liberdade de expressão, conferindo àqueles que querem que determinado fato ocorrido em sua vida seja esquecido pela sociedade.
Por consequência, há de ser sopeado o interesse das partes, no caso concreto, mas não se esquecendo, jamais, que mesmo diante de um episódio onde se queira que fato ocorrido fique tão somente onde aconteceu, a história deve ser demonstrada do modo fiel ao ocorrido. Ao aplicar as diretrizes da Lei Geral de Proteção de Dados, caberá a utilização da técnica adequada, encontrando o justo equilíbrio e dando à adversidade o desfecho mais condizente ao fato, seja estabelecendo a permanência das informações, seja compulsando as empresas que tenham as ferramentas adequadas a proporcionarem aos interessados uma forma efetiva no sentido de que retirem o conteúdo causador da violação dos direitos fundamentais da internet ou de outro meio de comunicação.
A Corte aprovou a seguinte tese com repercussão geral: É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais – especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral – e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível.
Publicado no Migalhas.
Rachel Leticia Curcio Ximenes é sócia do CM Advogados, bacharel em Direito pela PUC/SP. Mestra e doutora em Direito Constitucional. Presidente da Comissão Especial de Direito Notarial e Registros Públicos da OAB/SP – Ordem dos Advogados do Brasil, Seção São Paulo.