Por Rachel Leticia Curcio Ximenes e Patrícia Emi Taquicawa Kague
Em processo judicial, que tramitou sob segredo de justiça, a 3ª Câmara de Direito Privado do TJ/SP houve por bem permitir a inclusão do nome da madrasta na certidão de nascimento do autor, sem prejuízo ao registro da mãe e do pai biológico, reconhecendo-se a multiparentalidade.
O Acórdão restou assim ementado:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE MATERNIDADE POST MORTEM. MULTIPARENTALIDADE. Sentença de improcedência. Insurgência. Preliminar de cerceamento de defesa afastada. Inteligência do art. 357, §6º e §7º do CPC. Mérito. Acolhimento. Filiação socioafetiva que constitui modalidade de parentesco civil. Inteligência do art. 1.593 do CC. Princípio da afetividade jurídica que permite, conforme o entendimento do STJ, a coexistência de relações filiais ou a denominada multiplicidade parental. Reconhecimento que exige a necessidade de tratamento como se filho fosse e o conhecimento público dessa condição. Precedentes da Corte Superior. Hipótese dos autos em que a filiação socioafetiva está comprovada. Partes que tiveram relação materno-filial por 36 anos, após o falecimento da mãe biológica do autor e em decorrência da união estável mantida com seu pai. Elementos dos autos, tais como testemunhas, fotos e documentos, uníssonos no sentido de que as partes sempre se trataram como mãe e filho, de forma pública e notória, nutrindo afeto mútuo. Sentença reformada para reconhecer o vínculo de filiação socioafetiva entre as partes, determinando-se, em consequência, a inclusão do vínculo de filiação materna junto ao assento de nascimento do autor, sem prejuízo daqueles já registrados, bem assim as demais averbações pertinentes a este parentesco. Retificação do polo passivo para constar o espólio da falecida M.P. RECURSO PROVIDO, COM OBSERVAÇÃO.”1(sem grifos no original)
O autor ingressou com Ação de Reconhecimento de Maternidade post mortem, para ter reconhecido o vínculo de maternidade socioafetiva com sua madrasta.
De acordo com os autos, o autor e sua mãe afetiva conviveram por 36 anos e sempre se trataram como mãe e filho. A relatora esclareceu que “perante pessoas que conheceram as partes e conviveram durante certo período de tempo, a relação materno-filial era pública e notória“, restando evidente a chamada posse de estado de filho.
Maria Berenice Dias leciona que:
“Para o reconhecimento da posse de estado de filho, a doutrina atenta a três aspectos: (a) tractatus – quando o filho é tratado como tal, criado, educado e apresentado como filho pelo pai e pela mãe; (b) nominatio – usa o nome da família e assim se apresenta; e (c) reputatio – é conhecido pela opinião pública como pertencente à família de seus pais”.2
Ou seja, para se constituir a posse de estado de filho é preciso que o(a) pai/mãe trate o filho de criação como se filho biológico fosse, além disso, o filho deve se reconhecer como sendo descendente do(a) pai/mãe de criação e, por fim, a sociedade deve enxergar na relação afetiva a existência de legitimidade na filiação.
No caso em tela, foi comprovada a maternidade socioafetiva, visto que o autor e sua madrasta sempre mantiveram um vínculo de carinho como se mãe e filho fossem, sendo a relação pública e notória.
Segundo a relatora “o reconhecimento da parentalidade socioafetiva, assim, prestigia situação que preserva o elo da afetividade. Ainda que não haja ligação biológica, há vínculos afetivos que denotam a existência de relação filial“.
Portanto, correta a decisão do Tribunal, ao considerar os laços de afeto para declarar a maternidade socioafetiva entre o autor e sua madrasta, permitindo o registro no assento de nascimento.
Vale recordar a lição de Pedro Belmiro Welter:
“Não reconhecer as paternidades genética e socioafetiva, ao mesmo tempo, com a concessão de todos os efeitos jurídicos é negar a existência tridimensional do ser humano, que é reflexo da condição e da dignidade humana, na medida em que a filiação socioafetiva é tão irrevogável quanto a biológica, pelo que se deve manter incólumes as duas paternidades, com o acréscimo de todos os direitos, já que todas fazem parte da trajetória da vida humana”3.
Para o citado jurista, a condição humana é tridimensional composta por três elementos essenciais: genética, afeto e ontologia.
Sendo assim, negar a coexistência da verdade de fato e da verdade genética é a mesma coisa que negar a essencialidade do ser humano, por isso, o instituto da multiparentalidade tem ganhado cada vez mais espaço no ordenamento jurídico brasileiro.
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1- Apelação nº 1006090-70.2019.8.26.0477, 3ª Câmara de Direito Privado/TJSP, Desembargadora Relatora VIVIANI NICOLAU, j. 2/2/21
2- DIAS, Maria Berenice, Manual de Direito das Famílias, 6a edição, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2010, p. 366
3- WELTER, Pedro Belmiro, Teoria Tridimensional no Direito da Família, Editora Livraria do Advogado, Porto Alegre,2009, p. 279


Rachel Leticia Curcio Ximenes é sócia do CM Advogados, bacharel em Direito pela PUC/SP. Mestra e doutora em Direito Constitucional. Presidente da Comissão Especial de Direito Notarial e Registros Públicos da OAB/SP – Ordem dos Advogados do Brasil, Seção São Paulo.
Patrícia Emi Taquicawa Kague é advogado CM Advogados, especialista em Direito Tributário PUC/SP. Membro da Comissão Especial de Direito Notarial e Registros Públicos da OAB/SP – Ordem dos Advogados do Brasil, Seção São Paulo.
Artigo publicado no Migalhas.