Por Rachel Leticia Curcio Ximenes e André Abelha
Viena, dia 20 de dezembro de 1988. Como parte dos esforços contra o tráfico internacional de drogas, diversos países assinaram a Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e de Substâncias Psicotrópicas. Certo tempo depois, seguindo as regras de Direito Internacional, o Brasil, um dos signatários, aprovou internamente o texto pelo Decreto Legislativo nº 162, sendo o acordo promulgado pelo Decreto nº 154, em junho de 1991.
Cumprindo parte dos compromissos internacionais assumidos na Convenção de Viena, o país aprovou a Lei nº 9.613/98, que dispõe sobre os crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores, e regula a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos ali previstos.
A mesma Lei criou o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), "com a finalidade de disciplinar, aplicar penas administrativas, receber, examinar e identificar" as ocorrências suspeitas de atividades ilícitas previstas na Lei. O COAF atua em colaboração com outras entidades como o Banco Central do Brasil, a Comissão de Valores Mobiliários, a ControladoriaGeral da União, a Polícia Federal e o Ministério Público, no âmbito do Programa Nacional de Capacitação e Treinamento no Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (PCLD).
Os esforços renderam frutos. Em 2000 o Brasil foi admitido como membro efetivo do GAFI – Grupo de Ação Financeira (www. fatf-gafi.org/home/), em reconhecimento da comunidade internacional pelos avanços obtidos.
O GAFI é uma organização intergovernamental responsável por desenvolver políticas nessa área, desenvolvendo recomendações a serem observadas pelos países-membros, mas não está sozinho nisso. Em 1995, no Palácio de Egmont, em Bruxelas, surgiu o Egmont Group of Financial Intelligence Units, um grupo de cooperação internacional hoje formado por Unidades de Inteligência Financeira de 166 nações, entre elas o Brasil. A moldagem do COAF como a UIF brasileira, com autonomia operacional, foi um dos compromissos assumidos com o GAFI.
Então, o COAF é um órgão administrativo ligado ao Ministério da Fazenda (art. 14 da Lei nº 9.613/98), e em nível internacional, é a UIF brasileira vinculada ao Grupo de Egmont juntamente com as UIFs de outros 165 países.
Em duas décadas, muitos avanços. Só que os criminosos também continuaram investindo em formas de voar abaixo do radar das autoridades. A procura por mecanismos mais eficazes de desnudar crimes cada vez mais sofisticados é uma busca infinita, que nunca pode parar, e requer ampla colaboração em território nacional. Nesse contexto entrou em vigor a Lei nº 12.683/2012, que incluiu os registros públicos na lista das atividades (pessoas obrigadas) que devem reportar as transações suspeitas ao COAF.
Se as serventias extrajudiciais, com sua função "jurídica, cautelar, técnica, rogatória, pública e imparcial"1 , já eram importantes aliadas da justiça no combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, a reforma de 2012 catapultou sua relevância.
Mais sete anos se passaram até o nascimento do Provimento nº 88/2019, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que regula a política, os procedimentos e os controles a serem adotados pelos notários e registradores visando à prevenção dos crimes de lavagem de dinheiro e de financiamento ao terrorismo.
O referido Provimento CNJ exemplifica, em 19 incisos, as hipóteses de operações suspeitas (art. 20), cabendo aos notários e registradores "avaliar a existência de suspeição nas operações ou propostas de operações de seus clientes, dispensando especial atenção àquelas incomuns ou que, por suas características, no que se refere a partes envolvidas, valores, forma de realização, finalidade, complexidade, instrumentos utilizados ou pela falta de fundamento econômico ou legal, possam configurar indícios dos crimes de lavagem de dinheiro ou de financiamento do terrorismo, ou com eles relacionar-se" (art. 5º).
Essa não é, obviamente, uma tarefa simplória. No exercício da sua função, o delegatário tem que observar o caso concreto, levando em consideração as partes envolvidas, valores, forma de realização, finalidade, complexidade, e todos os caminhos existentes para a identificação de possíveis indícios de lavagem de dinheiro ou de financiamento ao terrorismo. Essa triagem é de suma importância. O desafio permanente dos cartórios é separar o joio do trigo, para não deixar de avisar à UIF sobre um negócio efetivamente suspeito, nem reportar injustamente uma operação totalmente lícita, sem relevância, e que apenas sobrecarrega o órgão, podendo trazer embaraços às partes.
Porém, há até hoje uma lacuna legislativa sobre a (não) obrigatoriedade da informação de que o imóvel foi adquirido, no todo ou em parte, em espécie. Muitas aquisições imobiliárias são realizadas em dinheiro vivo, em alguns casos com indícios de irregularidade.
A fim de preencher tal vazio, chegou à Comissão de Constituição, Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 89/2021 (PLC), que altera a Lei nº 7.433/85, que dispõe "sobre os requisitos para a lavratura de escrituras públicas e dá outras providências". Se aprovada a atual redação do PLC, serão duas modificações:

(i) o ato notarial, que hoje já menciona o pagamento do ITBI2 e determinadas certidões, também terá que prever, "no caso de compra e venda de imóvel, a declaração do comprador e do vendedor quanto ao valor do negócio jurídico, bem como se o imóvel foi adquirido, no todo ou em parte, em espécie" (art. 1º, par. 2º), com responsabilidade solidária de comprador e vendedor em caso de inveracidade de tal declaração (art. 4º); e

(ii) se "a compra e venda foi realizada em espécie", tal fato deve ser informado à UIF, no prazo de 24 horas.

Embora o CNJ, em total confiança ao trabalho dos notários e registradores dotados de fé pública, já trate sobre a possibilidade de comunicação ao órgão federal quando da suspeita de qualquer irregularidade das transações realizadas, a proposição vem deixar claro, e normatizar, que nos casos de aquisição de imóvel em dinheiro vivo, independentemente do valor, o fato deverá ser comunicado à UIF.
O profissional da serventia deve estar preparado para identificar as situações que apresentem riscos, classificando-as e priorizando as situações em que exijam cautela e prudência para sua realização5 . Com tais medidas, dar-se-á mais um passo no combate à corrupção e ao financiamento do terrorismo no país.
Publicado no Jornal do Notário.


Rachel Leticia Curcio Ximenes é advogada. Mestra e Doutora em Direito Constitucional pela PUC/SP. Presidente da Comissão de Direito Notarial e de Registros Públicos da OAB/SP. Sócia do Celso Cordeiro e Marco Aurélio de Carvalho Advogados Associados. Especialista em Direito Notarial e Registral pela EPM.
André Abelha é advogado. Presidente da Comissão Especial de Direito Notarial e Registral na OAB Nacional. Fundador e Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário. Mestre em Direito Civil pela UERJ. Sócio de Wald, Antunes, Vita, Blattner Advogados.


NOTAS
[1] BRANDELLI, Leonardo. Teoria Geral do Direito Notarial. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 128-132.
[2] Imposto de Transmissão Inter Vivos.
[3] Nas palavras de Carla Veríssimo: "Considerando que a grande maioria dos cartórios não possuem recursos para fiscalizar todas as operações, setores, funcionários e clientes de modo efetivo, simultaneamente e com o mesmo grau de intensidade, a abordagem baseada no risco é mais do que uma solução, uma necessidade imposta pelo fenômeno da escass de recursos". VERÍSSIMO, Carla. Compliance: incentivo à adoção de medidas anticorrupção. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 283.