José Eduardo Martins Cardozo e Saulo Vinícius de Alcântara

Por José Eduardo Martins Cardozo e Saulo Vinícius de Alcântara
O que se pretende com este brevíssimo trabalho é discutir de forma primária a possibilidade ou não de se redirecionar execuções contra terceiros que tenham recebido fraudulentamente patrimônio do devedor.
É possível o credor pedir a desconsideração da personalidade jurídica, direta ou indireta, conforme o caso concreto, para que a execução seja redirecionada contra terceiros beneficiados com transferência fraudulenta de bens pelo devedor?
Tentaremos iniciar uma discussão entorno dessa pergunta, mas ressaltamos, desde já, que o tema merece um trabalho muito mais profundo, apesar de ser salutar iniciarmos os debates, ao menos preliminares, em breves comentários e é isso que pretendemos na ocasião.
Tem chegado a nossos tribunais um número cada vez maior de demandas relativas ao redirecionamento de execuções contra terceiros, em especial execuções fiscais, com fundamento no artigo 50 do Código Civil combinado, às vezes, com dispositivos do Código Tributário Nacional. Em diversas ocasiões o devedor para se furtar do pagamento da dívida que contraiu transfere fraudulentamente seu patrimônio a terceiros, pessoas físicas ou jurídicas.
Tem sido uma tendência cada vez maior que o credor, ao invés de buscar a ineficácia da transferência patrimonial fraudulenta, peça ao Judiciário o redirecionamento da execução contra os terceiros que se beneficiaram com a transferência patrimonial fraudulenta. Esses pedidos são cada vez mais comuns em execuções fiscais, por exemplo.

Entendemos, salvo melhor juízo, que mesmo que a fraude tenha ocorrido e ela enseje a desconsideração da personalidade jurídica (direta ou indireta) com base no artigo 50 do Código Civil, mais especificamente do §2º de referido dispositivo legal, tal ocorrência não enseja o redirecionamento da execução fiscal, mas tão somente a ineficácia da alienação dos bens pelo devedor a terceiros, devendo tais bens voltarem ao patrimônio do devedor para responder pela dívida contraída por ele.
Ainda que presentes os requisitos da desconsideração da personalidade jurídica, direta ou indireta, esse evento não possui o condão de responsabilizar os terceiros beneficiados com a transferência fraudulenta de bens pela dívida do devedor.
Poder-se-ia declarar a ineficácia da alienação dos bens, ou mesmo responsabilizar os terceiros beneficiados pela transferência de bens no limite do valor dos bens a eles transferidos mediante fraude, mas jamais responsabiliza-los por dívida que não contraíram e/ou pela qual não possam ser responsabilizados nos termos da legislação tributária.
Ora, o contrário disso infringiria a limitação da atividade sancionatória advinda do princípio da intranscendência das sanções jurídicas, conforme previsto no inciso XLV do artigo 5º da Constituição Federal.
Desde o ano 326 a.c. os devedores respondem apenas com seus bens pelas dívidas inadimplidas e se no caso concreto houver fraude na transferência de bens do devedor, deve os bens alienados retornarem ao patrimônio do devedor, observado o devido processo legal, e serem utilizados para fazer frente à dívida, se for o caso, mas jamais essa fraude poderia conduzir, mediante aplicação do artigo 50 do Código Civil, ao redirecionamento da cobrança judicial contra os terceiros que com ela se beneficiaram.
Para desconsideração da personalidade jurídica há necessidade:

1º De requerimento da parte ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo – “artigo 50… a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo…“; e

2º De abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial – “artigo 50… Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz…“.

Havendo requerimento da parte ou do Ministério Público e provado o abuso de personalidade jurídica, poderá o juiz “artigo 50… desconsiderá-la…” e a consequência disso é a ineficácia da alienação fraudulenta do bem e não o redirecionamento da execução contra os terceiros que se beneficiaram com a alienação fraudulenta, sendo exatamente isso que preceitua o artigo 137 do Código de Processo Civil: “acolhido o pedido de desconsideração, a alienação… havida em fraude… será ineficaz em relação ao requerente.
Certamente a fraude indicada no artigo 137 do Código de Processo Civil é a fraude contra execução, mas se na fraude contra execução, que inclusive está tipificada criminalmente no artigo 179 do Código Penal, a desconsideração da personalidade jurídica se limita à ineficácia da alienação fraudulenta, por qual razão tal limitação não haveria de ser aplicada em outras hipóteses de alienação fraudulenta de bens?
A fraude contra execução decorre de conduta criminosa e os limites do consequente normativo da desconsideração da personalidade jurídica nessa hipótese devem servir de limites também ao consequente normativo da desconsideração da personalidade jurídica em outras hipóteses cuja premissa da desconsideração seja a alienação fraudulenta de bens. Seria contrariar o caput do artigo 5º da Constituição Federal tratar desigualmente aquele que comete crime de fraude contra execução, daquele que comete outra conduta fraudulenta na alienação de bens que enseje desconsideração da personalidade jurídica.
A desconsideração da personalidade jurídica afeta o patrimônio dos beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso e desde que eles tenham participado do abuso de personalidade jurídica, mas tal afetação deve se dar na medida do benefício auferido e não para além dele.
A desconsideração da personalidade jurídica não torna os beneficiados pelo abuso de personalidade jurídica sucessores universais de toda e qualquer obrigação do devedor! Ao contrário a responsabilidade dos beneficiados se restringe a certo e determinado ato de abuso de personalidade jurídica e se limita ao benefício auferido com ele. Além disso, exige-se que os beneficiados tenham participado do abuso de personalidade jurídica.
Deste modo, caso determinada alienação de bens decorra de abuso de personalidade jurídica e os terceiros que receberam tais bens tenham participado e se beneficiado do abuso, no máximo devem responder os terceiros beneficiados pelo abuso que praticaram e nos limites desse suposto abuso e não terem contra si redirecionada execução, em especial execução fiscal.
Determina o artigo 50 do Código Civil brasileiro que a desconsideração da personalidade jurídica somente pode ocorrer no caso de abuso de personalidade jurídica, desde que tal abuso beneficie seus sócios ou administradores, que tenham eles participado de referido abuso, mas mesmo ocorrendo tudo isso o artigo 50 do Código Civil limita a responsabilidade dos sócios ou administradores a certas e determinadas relações obrigacionais, sendo que no caso de alienação de bens mediante fraude o limite há de ser a ineficácia da alienação fraudulenta, conforme artigo 50 do Código Civil combinado com o artigo 137 do Código de Processo Civil.
Se exigirmos dos terceiros beneficiados que respondam para além do benefício que auferiram com o abuso de personalidade jurídica, estaremos rasgando o quanto disposto no caput e incisos XXII e XLV do artigo 5º da Constituição Federal e nos artigos 50, 186, 927 e 884 do Código Civil combinados com o artigo 137 do Código de Processo Civil.
É da tradição de nosso Direito que a consequência de um ato ilícito seja suportada somente pelo seu agente e na extensão do dano causado pelo ato, sendo vedado o enriquecimento sem causa da vítima do ilícito, sob pena de desrespeitarmos o direito à propriedade.
Há de se definir, portanto, quem cometeu a alienação fraudulenta de bens, pois que somente aquele que viola direito e causa dano a outrem comete ato ilícito (artigo 186 do Código Civil), sob pena de infringirmos o inciso XLV do artigo 5º da Constituição Federal e responsabilizarmos terceiros por suposto ato ilícito cometido pelo devedor.
Definido quem cometeu o ato ilícito deve-se verificar qual a extensão de tal ato em prejuízo da vítima, no caso, se a alienação de bens foi fraudulenta o dano causado ao credor consiste no fato de que os bens alienados não puderam ser expropriados para pagamento da dívida, sendo este o limite do dano a ser reparado (artigo 927 do Código Civil). Buscar reparação para além do dano causado configura enriquecimento sem causa e desrespeito ao direito de propriedade, o que é vedado pelo artigo 884 do Código Civil e pelo inciso XXII do artigo 5º da Constituição Federal.
Quando o legislador pátrio tratou da teoria da desconsideração da personalidade jurídica e a incluiu no sistema jurídico positivado ele não perdeu de vista a teoria dos atos ilícitos e da responsabilidade pela reparação do dano, tanto que limitou logo no caput do artigo 50 os efeitos da desconsideração da personalidade jurídica para certas e determinadas obrigações, preceituando no artigo 137 do Código de Processo Civil que na hipótese de alienação de bens havida em fraude, a consequência é a ineficácia da alienação.
Então, o máximo que se pode exigir na hipótese é a ineficácia da alienação dos bens alienados fraudulentamente pelo devedor aos terceiros beneficiados, não sendo lícito redirecionar a execução fiscal contra os terceiros, inclusive por força da segunda parte do inciso XLV do artigo 5º da Constituição Federal, que ordena que nem aos sucessores de pessoa condenada se atribui obrigação de reparar o dano além do limite do valor do patrimônio recebido, ainda que decretado o perdimento de bens.
Em suma, a responsabilidade pela suposta alienação fraudulenta de bens não pode passar das pessoas que supostamente a praticaram e deve ela se limitar à ineficácia da transferência dos bens havida em fraude, pois, a recepção dos bens transferidos fraudulentamente ao terceiros beneficiados é todo o benefício que poderiam eles ter auferido com o ato que, em tese, poderia ensejar a desconsideração da personalidade jurídica.


José Eduardo Martins Cardozo é sócio do CM Advogados, ex-Ministro da Justiça e ex-Advogado Geral da União, especialista em Direito Público e atuante nos Tribunais Superiores.
Saulo Vinícius de Alcântara é sócio do CM Advogados e especialista em Direito Tributário.
Publicado no Migalhas.