O texto retrata um dos traços mais marcantes do compliance empresarial, a fiscalização como ferramenta de atuação do programa. Todavia, apesar de muito efetiva, é necessário sempre dimensionar e refletir sobre os usos desta ferramenta, na medida em que o organismo de compliance pode esbarrar em direitos e prerrogativas de colaboradores e/ou demais fiscalizados, fiscalizando algo que não deveria.

Sendo assim, é indispensável o apoio de equipe jurídica externa especializada em compliance, que orientará, em caso de dúvida, quais são os limites a que a fiscalização deve respeitar.

Confira o artigo completo publicado pelo portal Jota Info:

Desafios aos programas de compliance

A vigilância é uma das estratégias utilizadas pelas empresas para assegurar a efetividade das normas estabelecidas internamente em suas políticas de prevenção à prática de infrações. É consectária, portanto, do dever de diligência, especialmente naquilo em que este se projeta sobre a necessidade de estruturação adequada da organização.

A prevenção e a descoberta dos atos lesivos podem ser feitas por meio de mecanismos de controle e supervisão diretos, a exemplo das práticas de monitoramento interno ou auditorias, assim como por outras soluções, como a instituição de canal de denúncias, a partir do qual a pessoa jurídica detém maiores possibilidade de conhecer as irregularidades, e, assim, remediá-las.

Todavia, estruturar e manter o funcionamento de tais sistemas de monitoramento e disciplina não é nada simples.

Pelo contrário, envolve inúmeros desafios, na medida em que diz respeito às próprias limitações que um particular tem para impor sanções em face de outro, mesmo quando a sua relação tenha como esteio a subordinação, que é o caso dos procedimentos destinados a apurar e punir faltas de empregados. Envolve, por igual, a necessidade de garantir aos denunciantes internos ou externos a devida proteção e preservação de seus direitos.

Por mais que algumas empresas possam dispor de tecnologias e infraestruturas para a detecção de condutas, elas não gozam do mesmo aparato policial de que se serve o Estado. Aliás, o poder sancionador do Estado se constrói sob a égide de um regime jurídico próprio que lhe possibilita exercer atividades investigatórias mais intrusivas, revestidas da legitimidade que o ordenamento jurídico lhe confere, e ainda, sim, bastante limitadas pelas garantias constitucionais.

Por outro lado, as empresas não dispõem dos mesmos mecanismos e regramentos que legitimam a atuação investigatória como a do Estado nem há qualquer referência normativa que possa servir de apoio direto para tal mister.

Por outro lado, especialmente quando o foco da investigação é um empregado, há que se conciliar a eventual incidência de garantias constitucionais com a necessária modulação que deve decorrer da própria natureza jurídica da relação de emprego, pautada pela boa-fé objetiva e pelo dever de cooperação.

O mesmo se diga em relação aos empregados que, embora não investigados, tenham faltado com o dever de denunciar ilícitos que eram do seu conhecimento.

Trata-se de questão delicada e complexa, pois, mais uma vez, diz respeito à configuração do grau de cooperação que se espera ou mesmo se exige de todos os componentes da empresa para que se alcance a efetividade de um programa de compliance.

Não é sem razão que, no ano de 2016, o Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região qualificou como abusiva a prática de monitoramento constante e permanente das contas correntes de seus empregados efetuada pelo Banco empregador, pois

(…) a adoção de programa de compliance, pelo empregador, não institui em seu beneplácito, carta branca que autorize o monitoramento da vida bancária/ financeira do empregado e a auditoria em sua conta bancária. "(…). As empresas que praticam esse método de gestão devem cuidar de estabelecer os critérios ou parâmetros do programa de compliance de modo a preservar a intimidade e a vida privada do empregado, tal como assegurado pela CF, no art. 5, inciso X".

Não se pode olvidar ainda do direito a um procedimento que confira aos empregados meios imparciais de investigação e julgamento e a observância da ampla defesa.

Em tais questões, a eficácia horizontal dos respectivos princípios constitucionais parece não encontrar muitas dificuldades.

Conforme adverte Adan Nieto Martín, diante um compliance orientado por valores, é preciso cuidar para que as sanções disciplinares sejam vistas como medidas de última ratio. Assim, devem ser asseguradas as garantias essenciais de um processo justo e a proporcionalidade das sanções.

Além disso, deve ser conferida oportunidade de acerto das condutas e a imposição de sanções com caráter ressocializador. Por seu turno, as medidas disciplinares devem ser utilizadas para os casos mais graves ou para as pessoas que ocupem as posições mais elevadas.

Em recente decisão de 18 de junho de 2019, proferida monocraticamente no âmbito do TST, houve a manutenção de dispensa por justa causa motivada pela violação dos códigos de ética e de conduta da empresa, diante da solicitação de vantagens indevidas e do conflito de interesses identificado entre os reclamantes e a empresa contratada como terceirizada.

A aludida decisão destacou pontos da apuração interna que reportam a quebra da confiança e dos deveres entabulados no Código de Ética e de Conduta, pois os próprios reclamantes que elaboraram o Programa de Prevenção de Riscos Ambientais (PPRA) e o Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMPO) da empresa contratada, posteriormente, deram aval para o início das obras e procederam à análise da aludida documentação.

Todavia, é importante que as garantias dos acusados sejam respeitadas. Tal preocupação não foi observada em julgado no qual o Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região validou dispensa por justa causa mesmo diante do argumento do reclamante de que a empresa não teria observado o contraditório e a ampla defesa no processo de sua dispensa, que teria sido confirmada em investigação interna por subordinados da empresa, sem a prévia oportunidade de defesa.

Diante desse quadro, se afastou a nulidade sob o argumento de que o relatório de "compliance" e o relato das testemunhas seriam suficientes para comprovar o motivo ensejador da justa causa (ato de improbidade e violação das regras éticas da empresa).

Por essas razões, percebe-se, a partir dos julgados mencionados, como o tema é candente e, exatamente por isso, vem chegando paulatinamente aos Tribunais, que terão um importante papel no objetivo de assegurar eficácia aos programas de compliance ao mesmo tempo em que definem e preservam os direitos dos envolvidos em investigações e processos sancionatórios.

Fonte: Jota Info