É incontroverso que a partir do ano de 2020 o mundo é assolado por uma condição que alterou, de modo profundo, a forma com que convivemos em sociedade. Desde que a Organização Mundial de Saúde – OMS, declarou, em 11 de março de 2020, uma nova pandemia mundial, provocada por um novo coronavírus (SARS-COV2), a rotina pessoal e profissional de toda população foi afetada de tal maneira que seus reflexos serão estendidos aos anos que virão.
Dentro desse contexto, foram tomadas medidas de caráter excepcionais, visto a forma e a velocidade da propagação do vírus. Comércios, empresas e instituições alteraram sua forma de funcionamento, antecipando o que até então era uma tendência: a ampliação do teletrabalho e a prestação de serviços os mais variados utilizando as plataformas virtuais baseadas nas tecnologias de informação e comunicação (TICs), como é o caso dos cartórios de notas e registros no Brasil.
Indispensáveis ao bom funcionamento da vida em sociedade, os cartórios, corretamente, foram considerados atividades essenciais, mantendo seu funcionamento durante o período de pandemia. Paralelo a esse fato, as serventias começaram a redirecionar a forma em que prestavam seus serviços, prestando-os à distância, por meio de videoconferência. Desde a recepção de documentos digitais, passando pela realização de casamentos e divórcios, sua inserção na via digital trouxe consigo uma ampliação do princípio ao acesso à justiça, bem como todos aqueles inerentes a personalidade, igualdade, manifestação de vontade, dentre outros.
A realização do casamento, importante trazer, se estabelece como um ato de livre e espontânea vontade das partes, carregadas de solenidades intrínsecas à sua realização, que devem ser observadas (art. 1535 do Código Civil). Sua realização sujeita-se à presença de autoridade competente, tais como a análise minuciosa de documentos que comprovem a capacidade dos interessados e se há alguma causa de impedimento. Outro ponto a se observar é que o Código Civil brasileiro traz a exigência de presença física na realização da cerimônia, trazendo exceções, como a utilização da procuração, nos termos do artigo 1.542.
Dadas essas circunstâncias, durante o período de distanciamento social causado pela pandemia, o instituto do casamento sofreu impactos diretos quanto a sua celebração. E nesse sentido trazemos a acertada decisão dos cartórios de migrar seus serviços à via digital. Embora ainda não adotada por todos os cartórios do país, o desenvolvimento tecnológico dos dias atuais permite que sejam captadas as vontades das partes em tempo real, trazendo a opção de participação de diversas pessoas no ato. Com isto, têm-se total condição de se estabelecer a intenção de constituição de família, recebendo o Estado, sem impedimentos, essa manifestação, declarando como realizado o ato e cumprindo o que traz o artigo 1.535 e seguintes do Código Civil.
No intuito de efetivar esse mecanismo de transferência às vias digitais, alguns Estados foram agraciados com emanados das corregedorias dos tribunais que permitem a realização do casamento por videoconferência. É o caso, por exemplo, de alguns Estados que adotaram as medidas necessárias para o efetivo cumprimento do procedimento, sendo, Amazonas (provimento 348/20), Alagoas (provimento 15/20), Bahia (provimento 13/20), Goiás (provimento 41/20), Minas Gerais (provimento 1.022/20) e Mato Grosso do Sul (provimento 7/21).
Simultaneamente a esse cenário, entrou em vigor a lei 13.709/18, denominada Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Inserida no mundo jurídico de modo a tratar os dados pessoais da população brasileira, inclusive aqueles nos meios digitais, a norma busca resguardar os direitos fundamentais de privacidade e o desenvolvimento da personalidade da pessoa natural. Diante desse contexto, que medidas devem ser adotadas para que os benefícios das TICs sejam incorporadas à celebração de casamentos sem vulnerar (ou violar) dispositivos previstos na LGPD? Dispõe a norma sobre a aplicação das mesmas regras do tratamento pelo Poder Público (artigo 23 e seguintes) para as serventias, dada a dimensão de dados que são tratados no âmbito dos cartórios de notas e de registros. Ao aplicar as diretrizes da LGPD, caberá a utilização da técnica adequada, encontrando o justo equilíbrio e dando à adversidade o desfecho mais condizente ao fato.
Importante ressaltar que a norma traz distinções sobre os dados que são indispensáveis para entender a forma como serão tratados. Neste ponto, é qualificado como dado pessoal toda informação relacionada à pessoa natural identificada ou identificável. Qualquer informação que identifique ou possa identificar uma pessoa, tais como nomes, números de documento, endereços, número de telefone, e-mail, identificadores únicos. Em contraponto, dado sensível é todo dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico.
Feitas essas distinções, ressaltamos que a LGPD prevê a proteção integral de sua liberdade, privacidade, segurança, consentimento expresso, acesso as suas informações para correções e pronto atendimento caso você queira excluir seus dados, dentre outros. As informações pessoais protegidas pela lei são aquelas determinadas ou determináveis.
De modo a se adequarem ao quanto tratado pela LGPD, os cartórios devem efetuar uma seleção dos dados tratados, visto que é exigida uma organização que limite a quantidade e o conteúdo dos dados analisados ao mínimo necessário. Ainda na esteira da regulamentação dos dados e a forma de seus tratamentos, a Corregedoria Geral da Justiça (CGJ/SP) publicou o provimento 23/20, que definiu as formas como essas informações devem ser tratadas, em complemento ao trazido pela lei federal. O provimento trouxe requisitos para uma maior segurança, principalmente aquelas solicitadas por meio eletrônico, de modo a reduzir qualquer dano, apresentando, ainda, aspectos que tratem sobre o compartilhamento de dados com as Centrais de Serviços Eletrônicos Compartilhados.
Uma vez observada a dimensão do ambiente virtual, faz-se necessária uma maior concentração e cuidados no tratamento de dados pelos cartórios. Embora sempre usados como modelo na excelente prestação de seus serviços, as serventias devem alterar, tão somente, o modo de segurança quanto ao processamento desses dados, devendo estes, atingirem somente sua finalidade pela qual foi coletada.
Em sua grande maioria, os provimentos destacam que o registro do casamento será feito e assinado no ato pelos participantes, por meio do certificado digital válido, ou presencialmente na serventia por aqueles que se encontrarem possuindo eficácia imediata, com agendamento prévio. Após esse processo, o oficial responsável pelo ato certificará no processo de habilitação que a celebração foi feita por videoconferência, indicando o nome do Juiz de Paz e as capturas de telas (prints) comprobatórias anexadas ao processo.
Ainda que o cenário se mostrasse desfavorável à continuidade de garantia de direitos e garantias, as serventias extrajudiciais mostraram-se atentas ao decorrer do fato e, majestosamente, começaram a prestação de seus serviços pela via remota. Mesmo adotada paliativamente pelas serventias, foi necessária toda uma reorganização em sua estrutura, de modo satisfazer o quanto disposto pela OMS, obedecendo as medidas de segurança, sem abrir mão dos ditames das legislações brasileira.
Muito embora o mecanismo tenha vindo no intuito de revolucionar o instituto, salienta-se que nem todas as etapas são realizadas de forma on-line. Há de se ater ao fato de que algumas formalidades, como a entrega de documentos, por exemplo, devem ser realizadas presencialmente junto ao cartório de registro civil, de modo a tornar o ato inequívoco de sua validade. Entretanto, é indispensável que os atos ganhem publicidade, o que é perfeitamente garantido pela via digital, com a presença simultânea dos nubentes, testemunhas, juiz de paz, registrador e preposto, assegurando a livre manifestação.
Com isto, foi possível observar que o mundo se viu diante de uma pandemia que trouxe restrições severas a população. Essas restrições refletiram diretamente na forma como os cartórios extrajudiciais atuariam de modo a garantir que direitos básicos fossem atendidos. Com a inclusão de recursos tecnológicos, de modo a viabilizar a realização de atos, tal como o casamento, que atende todos os requisitos necessários para sua validade e eficácia. Junto a toda essa transição, surge no ordenamento jurídico uma normativa que regula todos os dados pessoais da população e que afeta, diretamente, a maneira como os cartórios devem lidar com os dados pessoais dos cidadãos, inclusive os trabalhados de maneira online. Sem grandes surpresas, os notários e registradores vêm se adequando ao quanto disposto na lei e nos dispositivos infra legais, preservando a eficiência de suas delegações e permitindo a realização de procedimentos de modo regular, sem perder a essência de segurança em suas atividades.
Publicado no Migalhas.


Rachel Leticia Curcio Ximenes é sócia do CM Advogados, bacharel em Direito pela PUC/SP. Mestra e doutora em Direito Constitucional. Presidente da Comissão Especial de Direito Notarial e Registros Públicos da OAB/SP – Ordem dos Advogados do Brasil, Seção São Paulo.