Por Marco Aurélio de Carvalho, Rachel Leticia Curcio Ximenes, Maria Luiza Xavier Lisboa e Viviane Sedola
O Sistema Único de Saúde – SUS teve sua construção baseada no comando constitucional que determina a universalidade da saúde básica no Brasil. A saúde, direito fundamental do cidadão, e, por isso, indispensável e indisponível, deve ter seu acesso garantido pelo Estado. Isto significa que os Entes Públicos estão obrigados a ofertar o aparelho necessário para que a saúde seja alcançada por todos em nosso país, de forma livre, ampla, gratuita e sem quaisquer distinções.
O sistema é único, descentralizado e com participação comunitária, para, assim, ser inclusivo, democrático, de todos os povos e a eles servir.
Ainda que pareçam premissas deveras idealizadas, os parâmetros constitucionais devem ser o principal norte na construção de políticas públicas sanitárias no Brasil.
O que a telemedicina tem a ver com isso? Pode ser uma ferramenta, até então pouco disseminada, para auxiliar na promoção da saúde, seja na esfera pública ou privada. E sua aderência pelos sistemas transcende a utilidade que antes imaginava-se ter.
Entre os benefícios da telemedicina estão o fácil acesso ao atendimento médico, já que não há necessidade de deslocamento, o que desencadeia, ainda, mais agilidade no agendamento e realização de consultas, economia de recursos públicos, e, principalmente, tem o condão de potencializar o ideal de democratização do acesso à saúde.
Citamos alguns exemplos.
Ao considerar as características geográficas – continentais – do Brasil, e também a desigualdade latente que ainda busca-se apaziguar, possivelmente, a telemedicina serviria como boa aliada nos atendimentos às populações de localidades remotas, onde há pouca ou nenhuma oferta das especialidades médicas. Tanto na interlocução do paciente com médicos de outra região, quanto dos médicos generalistas locais e os especialistas remotos.
Exemplo bem aplicável diz respeito à aquisição de medicamentos à base de cannabis, que dependem de prescrição médica pelos respectivo especialista. Ainda tabu, aos poucos os profissionais têm aderido à prescrição da cannabis medicinal, já aceita pela própria Anvisa, e, a depender do caso, serve como única alternativa terapêutica ao paciente. Neste cenário, cerca de 1000 médicos já prescreveram remédios à base de cannabis, em comparação aos mais de 400 mil CRMs válidos.
Tendo em vista o baixo número de profissionais da medicina que prescrevem a cannabis medicinal, a telemedicina entra nesse contexto como um instrumento facilitador de conexão entre médicos e pacientes de diferentes localidades. Por ser de difícil substituição, tal tratamento é essencial, e, portanto, deve ter sua oferta – de forma precedente, a prescrição – garantida pelas redes de saúde.
Mesmo em relação aos atendimentos ambulatoriais, a teleconsulta, se bem aplicada e administrada, pode ajudar a desafogar a usual fila de espera para atendimentos simples, já que a população acaba recorrendo ao pronto socorro ainda que em situações de baixa complexidade. Nesse sentido, a telemedicina seria aqui uma ferramenta de auxílio para que o pronto socorro desafogue e possa focar nos casos urgentes e mais graves.
Importante considerar, ainda, o potencial do atendimento à distância em relação à medicina preventiva, justamente por facilitar a ida ao médico e o consequente acompanhamento da saúde do paciente.
Apenas para esclarecer, não se trata de substituição da modalidade presencial pela remota e nem mesmo de elevar a preferência à telemedicina, visto que a prática médica exige o exame físico como uma das principais fases que leva ao diagnóstico do paciente. Entretanto, precisa-se valorizar da mesma forma a anamnese, etapa importantíssima em que o médico entrevista o paciente, e que por vezes basta para que tratamento correto seja aplicado.
O próprio Código de Ética Médica permite o uso da telemedicina (art. 37, parágrafo único), desde que observada a regulamentação do Conselho Federal de Medicina. E é justamente a falta de uma regulamentação firme e abrangente que acaba por deixar a telemedicina obscura e com pouca confiança, mesmo entre aqueles que exercem a profissão.
A pandemia de coronavirus acabou por forçar a utilização deste método, em razão das medidas de isolamento, e, consequentemente, um novo regramento de suporte começa a aparecer. Ainda que de forma básica, a Portaria nº 467/2020, do Ministério da Saúde, publicada no início do estado de calamidade, trouxe alguma luz sobre os procedimentos para realização da telemedicina, mesmo que em caráter excepcional e temporário.
Diante da emergência sanitária, o atendimento remoto fez com que milhares de brasileiros e brasileiras pudessem ter acesso a consultas médicas, e que os profissionais que não estão na linha de frente no combate ao coronavirus permanecessem trabalhando, ambos com atenção às medidas de isolamento social.
Aguarda-se, nesse momento, a imprescindível regulamentação que virá do Conselho Federal de Medicina, e servirá não somente para delinear as condutas dos médicos em relação à prática, a fim de zelar pela saúde do paciente, como também sanar eventuais dúvidas existentes quanto à proteção de dados pessoais, assinatura de termos de consentimento, cobrança de consulta, meios tecnológicos utilizados, validade das receitas, dentre outras questões que têm surgido.
Note-se que a o Conselho Federal de Medicina chegou a publicar a Resolução nº 1.643, de 07 de agosto de 2002 – cujo teor, mesmo à época, já era básico -, mas que precisa de atualização para que realmente supra os dilemas da realidade que vivemos.
Não se dispensa, ainda, eventual edição de Leis e Normas Federais com o objetivo de aparar as arestas da legislação e também amparar os profissionais da saúde e os pacientes.
A partir de uma regulamentação sólida, segura e respeitosa com os profissionais da medicina e com os pacientes, será possível implementar o debate acerca da telemedicina como potencial ferramenta de auxílio na consecução de políticas públicas de saúde e de melhoria no desempenho até mesmo do setor privado. Novas discussões ganharão força, como o acesso à internet pela população, ainda precário, além da construção de instrumentos eficazes e seguros para a conferência entre o paciente e o médico.
A telemedicina deve ser utilizada não para tapar buracos, e nem teria essa capacidade, visto que o sistema de saúde no Brasil enfrenta problemas básicos ainda a serem resolvidos e a própria telemedicina encontra limites para sua execução.
Pode, apenas, passar a fazer parte de uma política pública inteligente.


Marco Aurélio de Carvalho é sócio do CM Advogados, bacharel em Direito pela PUC-SP, especialista em Direito Público, fundador do Grupo Prerrogativas e associado-fundador da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).
Rachel Leticia Curcio Ximenes é sócia do CM Advogados, bacharel em Direito pela PUC-SP, mestra em Direito Constitucional pela PUC-SP, doutora em Direito Constitucional pela PUC-SP, especialista em Direito Notarial e Registral pela Escola Paulista da Magistratura (EPM) e presidente da Comissão Especial de Direito Notarial e Registros Públicos da OAB/SP.
Maria Luiza Xavier Lisboa é advogada do CM Advogados, bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie com epecialização em Direito Constitucional e Administrativo pela Escola Paulista de Direito – EPD em conclusão.
Viviane Sedola é CEO e fundadora da Dr. Cannabis.
Artigo publicado no Migalhas.