O ato de decidir sempre foi um fator essencial na construção da civilização à qual pertencemos. No entanto, ao longo da história, grandes impérios, reinos e democracias surgiram com base em decisões que nem sempre foram tomadas de forma sistemática e analítica, como se pressupõe.

Na antiguidade, por exemplo, grandes líderes e conquistadores, como Átila, o Huno, e Gengis Khan, o mongol, ambos estrategistas geniais com vasta experiência nos campos de batalha, frequentemente recorriam a preces aos deuses, adivinhos e sacerdotes como apoio prévio a decisões importantes. No Ocidente, Alexandre Magno, o grande conquistador macedônio, também consultava oráculos com frequência antes de tomar decisões estratégicas[1]. Júlio César, influente general e estadista romano, também seguia a tradição religiosa romana de interpretação dos sinais divinos através de seus áugures e sacerdotes especializados antes de grandes decisões.

Apesar da influência do misticismo em seus critérios decisórios, é inegável o impacto histórico desses grandes gênios. Suas crenças, verdadeiras e essenciais para a época, conferiam certa “segurança” às decisões, mesmo que as superstições não tivessem necessariamente o condão de impedir a realização dos feitos notáveis.

Ao evocarmos imagens dos antigos líderes que, imbuídos de fé e rituais, recorriam a oráculos e sacerdotes para assegurar a validade de suas decisões, somos levados a refletir sobre a perene busca humana por mecanismos que confiram segurança aos atos decisórios. Se, na antiguidade, tais práticas buscavam ancorar as escolhas em fundamentos místicos, hoje, no contexto jurídico, especialmente no Sistema Tributário Nacional, a segurança jurídica se constrói por meio de decisões fundamentadas, racionais e éticas.

Neste contexto, é de grande relevo fixarmo-nos na máxima de Lênio Streck de que “Decidir não é o mesmo que escolher”[2]. Para referido autor, há que se compreender que “há uma diferença entre escolher, que está no plano da razão prática, e decisão, que está no plano da responsabilidade política e da intersubjetividade”[3].

A escolha é uma deliberação lógica individual e muitas vezes instrumental, onde se analisa alternativas e seleciona a que considera mais adequada. Por exemplo, um juiz escolher um argumento jurídico para fundamentar sua decisão. Ao passo que a decisão não é apenas um ato individual, mas um compromisso ético, político e que pressupõe responsabilidade pelas consequências, visto que envolve outros sujeitos e todo um contexto social. Por exemplo, um magistrado decidir um caso concreto, levando em conta o impacto social e a legitimidade da sua decisão.

Outro ponto de relevância fundamental a se fixar é que, no Estado Democrático de Direito, as Constituições deixaram de ser apenas cartas políticas para se tornarem textos compromissários e dirigentes, capazes de alterar cenários de injustiça social por meio da instituição de um amplo rol de direitos fundamentais e nesse contexto, a judicialização torna-se um grande foco de tensão, pois, em um país como o Brasil, a não efetivação dessa ampla gama de direitos sociais inevitavelmente leva à busca pelo Judiciário. Como consequência, as decisões judiciais adquirem relevância ainda maior[4].

Esse cenário ganha especial complexidade no contexto jurídico tributário diante do fato de que a gênese tributária brasileira se desenvolveu sobre pilares de deificação da atividade legislativa, especialmente nos dogmas da legalidade estrita e da tipicidade cerrada. Esses princípios conferiram à atividade legislativa uma suposta segurança jurídica absoluta, ao tentar enclausurar a realidade dentro de textos normativos. No entanto, esse modelo tornou as decisões administrativas e judiciais cada vez mais relevantes como fontes do Direito Tributário, ao mesmo tempo em que gerou um grande epicentro de insegurança jurídica.

Isso ocorre porque, por mais bem elaborado que seja um texto normativo, sempre haverá divergências interpretativas, cabendo aos órgãos aplicadores do Direito delimitar seus contornos. No entanto, é justamente nessa aplicação que a insegurança jurídica se agrava, especialmente quando as decisões apresentam fundamentações confusas e premissas desconexas.

Tomemos por exemplo o caso da Imunidade do ITBI exposta no art. 156, § 2º, inciso I, da Constituição Federal que assim dispõe:

Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:

(...)

II - transmissão "inter vivos", a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição;

(...)

§ 2º O imposto previsto no inciso II:

I - não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil;

 

A leitura do inciso I do §2º transcrito revela a existência de duas espécies de imunidade previstas no texto constitucional. Na primeira parte, o legislador constituinte estabeleceu a imunidade pura para uma única situação:

  1. A transmissão de bens e direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital.

 

Já na segunda parte, o texto descreve a imunidade qualificada, aplicável à transmissão de bens ou direitos decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, exceto quando a atividade preponderante do adquirente for compra e venda de bens imóveis, locação de imóveis ou arrendamento mercantil. Nessa hipótese, a imunidade não prevalecerá. Este é o posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria.

Isto porque, há pouco tempo o Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do Tema 796, fixou a seguinte tese: "A imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado". No voto vencedor do Ministro Alexandre de Moraes[5] consta expressamente que a imunidade prevista na Constituição Federal para fins de integralização de capital social é incondicionada, não se limitando à receita operacional preponderante da empresa. Todavia, não é o que muitas Prefeituras vêm interpretando.

As Prefeituras têm estabelecido algumas barreiras para a concessão da certidão de imunidade no âmbito administrativo em razão de uma interpretação discricionária do entendimento do Supremo Tribunal Federal no sentido da suposta possibilidade de o fisco municipal avaliar o imóvel integralizado pelo o que ele próprio entender ser o seu valor venal, causando uma avalanche de processos judiciais, contando com a adesão dessa temática por parte de alguns julgadores e, por consequência, criando jurisprudência sem trazer segurança jurídica ao tema.

Para ilustrar, tomemos como exemplo a ementa abaixo de um Mandado de Segurança julgado pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo[6]:

APELAÇÃO CÍVEL – Mandado de Segurança – ITBI – Integralização de bens imóveis ao capital social da impetrante – Pretensão voltada ao reconhecimento da imunidade tributária sobre a totalidade dos imóveis transferidos, nos termos do art. 156, § 2º, inciso I, da Constituição Federal – Sentença que denegou a segurança – Manutenção do r. decisório – Imunidade que deve ficar limitada ao valor dos bens até o montante da integralização do capital social – Cabimento da incidência do imposto sobre a diferença entre o valor integralizado ao capital social e o valor venal de cada imóvel – Observância ao entendimento firmado pelo E. STF, em sede de repercussão geral (Tema nº 796) – "In concreto", há diferença entre o valor atribuído aos imóveis pelo sócio para conferência das quotas sociais e os respectivos valores venais – Imunidade tributária que não alcança o valor excedente – Recurso não provido.

(TJ-SP – Recurso de Apelação: 1006383-06.2023.8.26.0637 Tupã, Relator: Silvana Malandrino Mollo, Data de Julgamento: 03/05/2024, 14ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 03/05/2024)

 

Este artigo não se propõe a esmiuçar o caso acima; no entanto, é importante destacar que a questão se assemelha à abordada anteriormente. Ou seja, o Município negou ao contribuinte a imunidade conferida no artigo 156, §2º, inciso I, da Constituição Federal, da totalidade do ITBI na integralização dos imóveis ao capital social de uma pessoa jurídica, pois apurou-se uma diferença dos valores declarados aos imóveis à título de imposto de renda pela pessoa física, com valor venal apurado pelo fisco municipal.

A sentença foi denegatória, no entanto, é na premissa utilizada pelo Egrégio Tribunal de Justiça Bandeirante sobre o afastamento da aplicação do Tema 796/STF quando do julgamento do recurso de apelação, é que faz chamar atenção. Segundo consta do voto proferido nos autos

(...) a interpretação que a apelante tenta dar ao precedente do E. STF (Tema nº 796) não condiz com o sentido expresso da tese jurídica firmada, pois não existem duas operações distintas: a integralização de capital social e a formação de reserva de capital. Mas toda quantia excedente à integralização de capital social é, por definição, capital de reserva, não estando acobertada, assim, pela regra da imunidade.”

 

É importante destacar que o paradigma analisado no Tema 796 do STF, é, de fato, uma situação muito específica de imóveis incorporados ao patrimônio da pessoa jurídica por meio de fusão/incorporação/cisão e que não foram destinados à integralização, pura e simples, do capital social subscrito, mas, sim, visando a formação de reserva de capital, porém, como acima exposto, o entendimento do Supremo Tribunal é bem claro quanto imunidade de ITBI nas incorporações de bens em realização de capital.

Assim, o entendimento do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, no caso em comento, é um tanto quanto chamativo, ainda mais quando analisado à luz das premissas do voto vencedor do Ministro Alexandre de Moraes que fixou a tese. Inclusive, há quem sustente que o posicionamento do Ministro Alexandre de Moraes no Tema 796 não possui caráter vinculante, uma vez que essa parte de seu voto não teria sido o cerne do recurso, mas sim discutida de forma acessória (obiter dictum)[7].

Dito isso, sem maiores rodeios, e com os ventos da mudança já se avizinhando após a promulgação da Emenda Constitucional nº 132/2023, é essencial destacar a necessidade de autocontenção por parte de nossos julgadores e julgadoras. Somente assim será possível estabelecer um sistema de solução de controvérsias que realmente contribua para a segurança jurídica. Sempre é prudente relembrar a máxima de Lênio Streck: “Decidir não é o mesmo que escolher”.

Quanto ao caso do ITBI, a jurisprudência ainda não está totalmente consolidada, tornando essencial que os tribunais superiores enfrentem novamente a questão para pacificar o entendimento sobre a abrangência da imunidade e os limites da exceção prevista no dispositivo constitucional.

Enquanto isso, talvez não fosse de todo uma má ideia recorrer a preces, adivinhos e sacerdotes, pois, como dizemos no interior, “não sabemos se deste mato sai cachorro.” Sigamos com fé na construção de um sistema decisório tributário seguro, pois “a fé não costuma faiá”.

 

Por Arthur Vruck Rodrigues Arimatéa

 


[1] CARVALHO. Cristiano. Teoria da Decisão Tributária. Almedina. São Paulo. 2018. p.37-38;

[2]  STRECK, Lenio. Diálogos com Lenio Streck: Hermenêutica, jurisdição e decisão. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2020. p. 233.

[3]  STRECK, Lenio Luiz. Compreender Direito: Hermenêutica. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019. p. 47.

[4] LUIZ, Fernando Vieira. Teoria da decisão judicial: dos paradigmas de Ricardo Lorenzetti à Resposta adequada à constituição de Lênio Streck. Livraria do Advogado: Porto Alegre,2013. p.43

[5] (...) É dizer, a incorporação de bens ao patrimônio da pessoa jurídica em realização de capital, que está na primeira parte do inciso I do § 2º, do art. 156 da CF/88, não se confunde com as figuras jurídicas societárias da incorporação, fusão, cisão e extinção de pessoas jurídicas referidas na segunda parte do referido inciso I. (...)” BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n° 796.376, relator Min. Marco Aurélio, relator do acórdão Min. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, Distrito Federal, j. em 5 de ago. 2020.

[6] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n° 1006383-06.2023.8.26.0637, 14ª Câmara de Direito Público, rel. Des. Silvana Malandrino Mollo, j. em 3.05.2024.

[7] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n° 1024494-48.2022.8.26.0451, 14ª Câmara de Direito Público, rel. Des. João Alberto Pezarin, j. em 6.12.2023.