As constantes evoluções e conquistas em nosso corpo social são fatores preponderantes na hora de determinar uma maior flexibilidade à concepção de núcleo de família adotado pelo Direito Brasileiro. A pluralidade e a constante mobilidade refletem na sociedade atual, que passou por uma verdadeira transição paradigmática, acarretando-lhe mudanças estruturais e funcionais. O conceito de entidade familiar vem se desprendendo de pré-conceitos (e preconceitos) e sendo interpretado à luz da afetividade.
O Superior Tribunal de Justiça foi um dos pioneiros no aprimoramento do sentido de socioafetividade para o Direito de Família brasileiro, visto que acolhe essa categoria há tempos, como no julgamento do RESp 709608 (DJe de 23.11.2009).
Foi nesse sentido que o Tribunal de Justiça de São Paulo reformou decisão de primeiro grau e permitiu a retirada de sobrenome paterno por abandono afetivo e material. A 3ª Câmara de Direito Público do TJ/SP, ao julgar o processo nº 1003518-65.2019.8.26.0664, entendeu que comprovado o rompimento afetivo entre o genitor e a filha, não há razões para manutenção do patronímico paterno.
A autora do feito ingressou com ação argumentando que o sobrenome trazia constrangimento e sofrimento, e que seu mantimento era uma clara ofensa aos direitos à personalidade e dignidade. A ação foi julgada improcedente em primeiro grau, mas a sentença foi reformada pelo TJ/SP.
Ao Desembargador Donegá Morandini ficou atribuída a missão de relatoria da ação. O Relator, em seu voto, registrou ser "incontroverso o rompimento de vínculo de afetividade existente entre a apelante e seu genitor. O próprio apelado, embora afirme querer bem à filha e desejar a reaproximação, assume que se afastou". Continuou seu voto trazendo que o relatório psicológico juntado à petição inicial é satisfatório para demonstrar "o quadro de sofrimento, desconforto e constrangimento decorrente do sobrenome do pai".
Ainda no entendimento do relator, "evidenciou-se que a exclusão registral do patronímico paterno não gerará prejuízos a direitos ostentados por terceiros, uma vez que não constam registros de ações nos distribuidores cíveis e criminais em nome da recorrente", ao dar provimento à apelação. A decisão foi por unanimidade.
Importante se atentar ao fato de que o princípio da imutabilidade do nome não é absoluto no sistema jurídico brasileiro. Essa flexibilização, ao atender as reais necessidades da sociedade, adequando-se as suas muitas transformações, é plenamente condizente com os requisitos postulados em lei, com relação ao princípio maior da dignidade da pessoa humana. Ao admitir a alteração do patronímico, garantiu-se a proteção da personalidade da apelante.
Com isso, superada a rigidez do princípio da imutabilidade, o Tribunal de Justiça de São Paulo trouxe importante precedente àqueles que desejam reaver seus direitos basilares ao nome e uma vida digna. Suas projeções jurídicas podem contribuir para um remodelado direito de família brasileiro. Observar que a relação familiar é muito além do laço sanguíneo é um importante passo para uma eficaz aplicação de um dos principais direitos constitucionalmente assegurados, qual seja, a dignidade da pessoa humana.


Gustavo Magalhães Cazuze, bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, campus São Paulo, com conclusão em 2018.