Sobre o novo modelo de arquivamento de inquéritos policiais
A Lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019, popularmente denominada "Pacote Anticrime", trouxe importantes inovações à consolidação do modelo acusatório no Processo Penal Brasileiro, sugerindo uma melhor adequação aos papeis assumidos pelo magistrado e pelo representante do Ministério Público no decorrer do procedimento investigatório.
A mencionada legislação alterou a redação do artigo 28, do Código de Processo Penal, para excluir a participação do juiz criminal do controle da decisão de arquivamento de inquéritos policiais. Instituiu-se, portanto, a substituição do controle judicial por meio de uma espécie de remessa necessária à instância superior do Ministério Público, considerando-se também a possibilidade de recurso voluntário da vítima.
Diante do contexto apresentado, verifica-se a intenção do legislador em uma maior estabilização do sistema acusatório no Processo Penal Brasileiro, mesmo na fase de investigação preliminar, destacando-se a necessidade de que a acusação seja sustentada por um órgão distinto daquele que irá julgar. Seguindo tal entendimento, ainda que em procedimento prévio à ação penal, deverá ser mantido em absoluto o caráter imparcial do juiz natural, obstaculizando-se a adoção de medidas que promovam ou incentivem uma possível denúncia.
Tal novidade deve-se ao fato de que, anteriormente ao texto da Lei 13.964/2019, o arquivamento de um inquérito policial alternava-se entre os sistemas acusatório e inquisitivo.
Isso pois iniciava-se com a promoção de arquivamento pelo Ministério Público, sendo então encaminhado à autoridade judicial para deliberar a respeito da manifestação ministerial, podendo o juiz aceitar a proposta do Ministério Público, chancelando o encerramento das investigações, ou recusá-la. Apenas neste último caso os autos deveriam ser conduzidos à superior instância do Ministério Público para que o Procurador-Geral deliberasse a respeito do arquivamento ou propositura de ação penal.
Pela nova redação do artigo 28 do Código de Processo Penal, não mais se teria um requerimento ou promoção ministerial de arquivamento, mas sim a própria decisão de não incriminar. Nesse caso, o promotor natural decide pela não persecução criminal, fundamentando-se no interesse público e em acordo com os critérios de legalidade e oportunidade.
Cumpre ainda ressaltar dois relevantes aspectos introduzidos pelo mencionado dispositivo. O primeiro refere-se à exigência do controle hierárquico sobre a decisão de arquivamento, pelo que o promotor natural deverá, necessariamente, submeter sua manifestação à revisão da Procuradoria Geral. Assim, ao receber os autos com a decisão de arquivamento, o órgão revisional do Ministério Público poderá homologá-la ou, caso dela discorde, determinar a continuidade das investigações por meio de diligências complementares, ou ainda designar outro membro da instituição para deflagração da denúncia.
O segundo aspecto relaciona-se à oportunidade da vítima, ou de seu representante legal, após notificada da decisão de arquivamento, exercer seu direito de recurso no prazo de 30 dias, com apresentação de suas razões ao órgão revisional do Ministério Público. Da mesma forma, constatada a identificação do investigado, o suposto autor da infração penal deverá ser cientificado do arquivamento, integrando seu direito à ampla defesa, podendo apresentar os fundamentos para que o arquivamento seja ratificado.
A autoridade policial que presidiu o inquérito também precisará ser comunicada sobre o destino dado aos autos da respectiva investigação, para que atualize seus registros, assim como o Juiz de garantias – outra figura nova trazida pelo "Pacote Anticrime" – para devida baixa no sistema e, eventualmente, revogação de medidas cautelares que tenham sido impostas ao suspeito.
De tal modo, uma das observações que se insurge com o sistema de revisão interna obrigatória diz respeito ao crescente espaço de discricionariedade do Ministério Público, concentrando para si os poderes de trancamento das investigações, ainda que se considere a posterior possibilidade da rejeição judicial da denúncia. Como consequência direta, o Ministério Público teria maior controle e autoridade sobre a decisão de não acusar o suspeito ou indiciado.
Outrossim, é bastante provável que também venha a ocorrer um aumento da carga de trabalho para o Ministério Público, uma vez que o arquivamento do inquérito policial se dará em duas etapas, considerando-se a necessidade de confirmação ou revisão da decisão, além da possibilidade de manifestação pela vítima e pelo investigado em apresentarem suas respectivas razões no sentido de discordar ou reforçar a deliberação ministerial.
A problematização acima mencionada foi, inclusive, trazida pela Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6305, acarretando na recente suspensão da alteração referente ao artigo 28 do CPP, dentre outros dispositivos, em decisão proferida no último dia 22 de janeiro, pelo Ministro Vice-Presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux.
A parte autora da ADI, representada pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público, em síntese, afirmou que, embora considerasse a alteração elogiável e aguardada pela comunidade jurídica, "a lei desafiou normas constitucionais que dizem respeito à falta de razoabilidade e proporcionalidade da alteração para a sua vigência, na medida em que causará extremo impacto na autonomia e gestão administrativa e financeira do Ministério Público".
A impugnação foi justificada por meio de um breve levantamento de dados relacionados à instituição. De um lado, demonstrou-se um acervo corrente de 829 inquéritos policiais objetos de aplicação do artigo 28 do CPP no ano de 2019, o que daria uma média mensal de 70 procedimentos investigatórios criminais para apreciação do Procurador-Geral de Justiça.
D’outro modo, a partir da ampliação ambicionada pelo novo dispositivo, o número apresentado de arquivamentos no ano de 2019 seria de 174.822, o que daria uma média mensal de análise de 14.500 procedimentos.
Logo, entendeu o Ministro Fux que a solução jurídica adequada, por ora, seria a suspensão do dispositivo, para posterior análise de mérito pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal. Isso pois, ainda que o novo texto do artigo 28 busque conferir maior segurança às hipóteses de arquivamento dos procedimentos criminais, em contrapartida, tais estratégias poderiam induzir em uma sobrecarga de trabalho já presente na instituição do Ministério Público, tanto em nível estadual quanto federal, resultando em uma possível lentidão e morosidade do procedimento.
Em suma, a lógica até então adotada violava diretrizes do sistema acusatório, pois permitia a intromissão do julgador em âmbito de decisão sobre a acusação, contaminando assim a necessária imparcialidade do Juiz natural. O novo sistema visa suprimir tal controle judicial sobre o arquivamento da investigação preliminar, fortalecendo a atuação da vítima e do Ministério Público, de forma que o inquérito seria remetido para homologação ao órgão superior na própria instituição.
O que ocorre é que, frente a uma maior coerência da sistemática de homologação de arquivamento dos inquéritos policiais com o sistema acusatório, há que se refletir também sobre os possíveis efeitos de uma maior autonomia conferida ao Ministério Público, bem como sobre uma necessária reestruturação da instituição.
Assim, será importante acompanhar com cautela os próximos passos do novo modelo introduzido pelo artigo 28, afim de resguardar não somente os direitos da vítima, mas também as garantias fundamentais do investigado.
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* Luciana de Freitas, advogada, mestre em Direito pela UNESP. Especialista em Processo Penal pela Universidade de Coimbra/IBCCrim. Pós-Graduanda em Ciências Criminais Pela USP/FDRP.
* Pedro Junqueira P. B. Sandrin, advogado, especialista em Direito Tributário e Processo Civil pela FDRP-USP. Pós-Graduando em Direito Penal e Processo Penal pela EPD.
Sócio Responsável: Ricardo Lima Melo Dantas (OAB/SP 319.902-A)
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