Covid-19 e riscos de Compliance: como garantir a conformidade da empresa em período de crise e no day after
Por Comissão Jurídica CCI França-Brasil-SP
Introdução: fraudes e crises
Fraudes e crises possuem uma relação simbiótica. Fraudes podem levar a crises graves. As fraudes sistêmicas identificadas pela Operação Lava Jato conduziram a crises não só nas empresas afetadas, mas no mercado como um todo. As fraudes hipotecárias, chamadas de uma "epidemia" pelo FBI já em setembro de 2004, desempenharam um papel fundamental na crise do mercado imobiliário.
De outro lado, crises criam um ambiente propício para irregularidades. A crise gerada pelo atentado de 11 de setembro levou a contatos entre concorrentes em algumas indústrias cuja legalidade é até hoje discutida. Da mesma forma, a atual crise decorrente da pandemia do coronavírus (COVID-19), com todos os efeitos econômicos associados, causa especial preocupação para os departamentos de compliance, na medida em que aumenta os riscos de irregularidades.
Esse aumento do risco de irregularidades decorre de diversos motivos. Primeiro, a crise cria oportunidades de irregularidades, seja diretamente, por exemplo em razão de necessidade de contratações emergenciais (públicas e privadas), seja indiretamente, aproveitando que as atenções estão voltadas à saúde e gestão da crise. Nesse sentido, vale destacar que 59% dos entrevistados por pesquisa mundial realizada pela PwC afirmaram que oportunidade é o principal fator que contribuiu para fraude. No Brasil, esse número aumenta para 65%.
Segundo, a crise gera uma grande pressão interna e externa significativa para os funcionários. Dentro da empresa, a pressão por performance pode ser facilmente traduzida em metas irreais. Fora da empresa, funcionários eventualmente afetados diretamente pela crise, por perdas financeiras na bolsa de valores, aumento de custos ou corte de remuneração, podem sofrer pressão para compensar as perdas sofridas.
Em linha com esses fatores, a crise também gera uma série de possibilidades de racionalização para um ilícito. Afinal, trata-se de uma situação absolutamente nova e excepcional, que pode levar a um processo de aceitação ou de justificação de condutas irregulares.
Diante disso, os departamentos de compliance das empresas devem ficar ainda mais presentes, fazendo parte integral do gerenciamento da crise. Deve ficar claro para a administração e para os funcionários que a crise só pode ser superada dentro de um ambiente de respeito às regras. Considerando a mencionada simbiose entre fraudes e crises, eventuais desvios, ao contrário de cortar caminho para a recuperação, tendem a prolongar a crise ou criar outras crises – talvez com consequências ainda piores.
Compliance durante a crise
Em especial durante o período de distanciamento social, os departamentos de compliance são de especial relevância para reforçar mensagens de integridade e para fornecer os instrumentos adequados para que a empresa mantenha suas operações e consiga adequar seus contratos durante o ambiente da crise.
Recomenda-se que os departamentos de compliance tenham especial atenção em relação aos pontos que seguem:
Compliance para funcionários de home office
A implementação de trabalho remoto por empresas leva a um distanciamento dos funcionários, o que torna mais difícil o monitoramento de suas atividades.
Recomendação: Recomenda-se reforçar aos colaboradores que as regras de integridade continuam valendo. É interessante, se possível, envolver a alta administração no envio dessas mensagens, demonstrando o comprometimento do topo da empresa. Além disso, é importante manter um canal de comunicação aberto com os funcionários, a fim de demonstrar que a área de compliance continua disponível para esclarecimento de eventuais dúvidas e recebimento de denúncias.
Segurança da informação
Com o trabalho em casa, os funcionários tendem a adotar meios de comunicação informais, como Whatsapp, telefone e e-mail pessoais, para interagir com demais colaboradores, clientes, fornecedores e demais […]
Recomendação: Os funcionários devem ser instruídos a continuar utilizando os canais de comunicação corporativos, para que a empresa mantenha um registro fidedigno das atividades e discussões ocorridas neste período instável de pandemia. Eventualmente, esses registros poderão ser necessários em investigações internas futuras.
Contratações emergenciais
A suspensão de atividades por certas indústrias e prestadoras de serviço pode levar à necessidade de contratação emergencial por parte das empresas.
Recomendação: É necessário estabelecer medidas de due diligence mínimas para a contratação, se possível, e estabelecer um limite de valor e tempo para contratação emergencial. Os contratos celebrados também devem conter cláusulas anticorrupção e prever a realização do procedimento de auditoria completo no futuro.
Comunicação com demais empresas para prestação de serviços essenciais
A depender do mercado em que atua, talvez seja necessária uma comunicação temporária com empresas concorrentes para a empresa ser capaz de continuar fornecendo produtos escassos a todos os consumidores. No entanto, tais arranjos setoriais devem ser analisados com cuidado, com a devida comunicação às autoridades antitruste. Nos Estados Unidos, o DOJ e o FTC já comunicaram que irão analisar pedidos similares no prazo máximo de até sete dias. A ECN também comunicou que não intervirá ativamente contra medidas necessárias e temporárias adotadas por empresas para evitar escassez de suprimentos. O CADE, por sua vez, não se pronunciou de forma oficial e específica sobre esse assunto, mas indicou que "será razoável e compreensível na análise de demandas específicas" que for analisar.
Recomendação: Toda comunicação com concorrente deve ser analisada pelo departamento jurídico da empresa, que poderá indicar se existe algum tipo de ilegalidade na conduta.
Inexigibilidade ou dispensa de licitações
As empresas devem conferir reforçada cautela na celebração de contratos com a Administração Pública, sem ocorrência de licitação.
Recomendação: É importante manter registro de interações com agentes públicos, especialmente se forem realizados de forma remota, verificar adequação do caso concreto às disposições da Lei no 8.666/1993 e estabelecer controles internos rígidos para tais casos.
Aumento de preços
As autoridades brasileiras e estrangeiras estão atentas a possíveis aumentos abusivos de preços de produtos essenciais.
Recomendação: Neste momento, é necessário que as empresas continuem respeitando suas políticas comerciais e mantenham registro de notas fiscais e quaisquer documentos relevantes para justificar o aumento de preço de seus produtos.
Preparação para o day after
A pandemia vai passar. Porém, seus efeitos ainda perdurarão bastante. Convém que os departamentos de compliance comecem a se preparar para o day after o quanto antes, para impedir que desvios ocorram no ambiente pós-crise. Alguns cuidados que deverão ser tomados pelas empresas incluem:
[…]
Conclusão
Em cenários de crise, é imprescindível que o programa de compliance mantenha-se como um eixo condutor das atividades das organizações, especialmente porque eventuais fraudes e condutas ilícitas podem gerar perdas ainda maiores para as empresas.
É importante destacar, também, que os riscos de compliance não aparecem apenas para empresas que estão sofrendo com diminuição da demanda, sendo necessário um olhar rigoroso também por parte de empresas que estão presenciando um aumento de demanda, como as dos mercados médico-hospitalar e farmacêutico.
Observação CM Advogados: Em tempos de coronavírus, imprescindível se faz a manutenção e fortalecimento dos mecanismos de compliance empresarial. Os pontos destacados no artigo trazido demonstram apenas algumas das muitas possíveis vulnerabilidades que um cenário de crise mundial pode revelar chamando a atenção para o fato de que a crise será superada mas a permanência das empresas e dos negócios também dependerão da qualidade e legalidade dos atos tomados nesse momento. Nesse ponto, cabe mencionar ainda que o compliance empresarial deverá atuar efetivamente nas tomadas de decisões negociais nesse período tão delicado visando proteger e perpetuar o negócio no day after.
Publicado em CCI França Brasil.